Rio
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Por Rafael Galdo e Jéssica Marques — Rio de Janeiro

No tratamento contra um câncer de mama no Hospital Federal do Andaraí, a doméstica Maria das Neves Bento, de 57 anos, enfrentou a demora de meses para uma consulta, a troca repentina do médico que a acompanhava e o adiamento de sua cirurgia, que era de urgência, devido à escassez de insumos — na unidade, relatam funcionários, às vezes faltam de soro fisiológico a medicamentos para quimioterapia. São angústias de vida ou morte que afligem pacientes dos seis hospitais e dos três institutos federais do Rio, onde a iminência do colapso neste fim de ano só foi contida anteontem, após a União prorrogar o contrato temporário de 3.478 profissionais de saúde, 500 deles que seriam dispensados esta semana. A medida é considerada, no entanto, um paliativo, onde o déficit de pessoal é apenas um dos muitos sintomas da desestruturação da rede — para a qual o próximo governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva terá que encontrar remédios.

Quando se faz um exame mais profundo, somente nos seis hospitais gerais(Bonsucesso, Andaraí, Servidores, Ipanema, Lagoa e Cardoso Fontes), o número de leitos fechados anteontem à tarde, segundo o Censo Hospitalar Público do Rio, chegava a 455 (27,9% dos 1.630 existentes), grande parte por falta de médicos ou enfermeiros. Números do Datasus sobre as internações nessas unidades também evidenciam o impacto no atendimento à população. De janeiro a setembro deste ano, foram em média 3.060 por mês, 18% a menos do que as 3.734 que se registrava mensalmente em 2019, antes da pandemia.

Os dilemas que o governo Lula terá que encarar mobilizaram uma reunião ontem de sua equipe de transição com servidores e sindicatos. Além da falta de recursos humanos, entre as questões já identificadas estavam problemas com contratos e a diminuição da oferta de serviços, conforme adiantou o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro.

A doméstica Maria das Neves conhece na carne as consequências dessas fissuras. Antes de ser encaminhada para o tratamento do câncer no Andaraí, ela chegou a ouvir de um médico que ela estava “procurando doença”. Na época, ela tinha um nódulo de um centímetro. Para a primeira consulta no Andaraí, em 2021, ela penou quase dois meses. E quando, finalmente, teve a cirurgia marcada, o procedimento foi cancelado pela falta de insumos. Foram necessárias repetidas queixas de seu marido na ouvidoria da unidade para a operação ser agendada novamente.

— Talvez, se meu marido não tivesse reclamado, eu nem teria sido atendida — afirma Maria das Neves.

‘É uma roleta-russa’

Há mais de dez anos no Andaraí, uma profissional de saúde conta que, no início do ano, zeraram estoques de medicamentos básicos, como Clorexidina Degermante, utilizado em grande escala nos procedimentos cirúrgicos. A falta de médicos, diz ela, é constante, o que torna a abertura da emergência pediátrica, por exemplo, uma incógnita:

— Tem dia em que há atendimento numa determinada especialidade, em outras, não. É uma roleta-russa. A pessoa vem e tenta a sorte. A emergência também funciona quando tem. E a gente se sente impotente.

Emergência com cadeado

Por volta das 8h da última segunda-feira, a triagem dos pacientes que esperavam por atendimento na emergência estava trancada a cadeado. Na fila, enquanto isso, muitos não se aguentavam em pé. A dona de casa Andreia Barbosa, de 32 anos e que há 12 meses aguarda uma operação, tinha saído de Belford Roxo, na Baixada, com fortes dores na vesícula e papéis de risco cirúrgico na mão — dados pelo Hospital Municipal Moacyr do Carmo, em Duque de Caxias. Chegou ao Andaraí às 6h30, e ali ficou horas sentada numa cadeira de rodas, sem um medicamento para amenizar seu sofrimento.

— Tomo dipirona, Buscopan, Tramal e até morfina, mas nada adianta. Não consigo mais raciocinar de tanta dor. É muito descaso com o ser humano — lamentou.

Em todas as unidades federais, o temor era que tamanha desassistência piorasse se os contratados temporariamente fossem demitidos. Diante do caos que se previa, a Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e a Defensoria Pública da União (DPU) chegaram a entrar com ações para evitar a dispensa dos trabalhadores. Em ambos os casos se destacava, porém, que nem a permanência deles supriria o déficit de pessoal na rede. A DPU citou dados do Conselho Regional de Enfermagem (Coren-RJ) que indicam a falta de 1.611 profissionais de enfermagem apenas nos seis hospitais gerais federais do Rio. Já a presidente da comissão da Alerj, a deputada Martha Rocha, estimou em cerca de 10 mil o déficit de trabalhadores em toda a rede.

Devido à escassez de médicos, no Hospital Federal de Bonsucesso, a emergência passou a receber apenas pacientes com encaminhamento. Já em outubro de 2020, um dos prédios do hospital foi atingido por um incêndio. Em toda a unidade, dos leitos que sobraram, anteontem à tarde 46% (188 de 409) estavam fechados, cerca de 90% por falta de médicos. Presidente do corpo clínico, o médico Julio Noronha ressaltava, no entanto, o quanto a unidade — localizada perto dos complexos da Maré e do Alemão, da Avenida Brasil e das linhas Amarela e Vermelha — continua imprescindível para a sobrevivência de milhares de pacientes:

— Mesmo com a emergência referenciada, qualquer baleado nessa região, a polícia leva para o Bonsucesso. Além disso, o hospital atende a mais de 15 mil pacientes crônicos.

Noronha diz que a prorrogação dos contratos temporários anunciada quarta-feira significa um respiro. Porém, defende que o próximo governo tenha respostas mais efetivas.

Entre as soluções, o médico cita três caminhos que têm sido debatidos. Ele lembra o projeto para que hospitais de excelência privados, sobretudo de São Paulo, assumam as unidades federais. Para recompor os quadros, outra saída discutida é a realização de contratações de celetistas, e não de estatutários, pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Mas Noronha defende o modelo dos concursos públicos.

Integrante da transição de governo federal, o secretário municipal de Saúde do Rio, Daniel Soranz, ressalta outra equação a se resolver: a redução do orçamento do Ministério da Saúde. Para o ano que vem, pela proposta orçamentária do governo federal, são R$ 149 bilhões previstos, contra R$ 162 bilhões este ano. Neste fim de 2022, diz ele, a míngua de recursos afeta não só a rede federal, mas também os recursos discricionários da Saúde repassados a estados e municípios.

— A esperança é que seja aprovada a PEC da Transição, para recompor parte do orçamento do Ministério da Saúde. A falta de verbas nos hospitais já provoca atrasos nos processos licitatórios e falta de medicamentos essenciais — afirma ele.

‘Efeito cascata’

O que ocorre, então, é um efeito cascata, diz o secretário:

— O Rio depende muito da rede federal e, em parte, da estadual, para procedimentos de alta complexidade. Pessoas que não podem esperar a resolução orçamentária acabam em outras unidades públicas. A emergência de Bonsucesso fechada, por exemplo, sobrecarrega o Hospital Municipal Salgado Filho.

Nessas condições, filas aumentam por todos os lados. Ele ressalta que uma cirurgia de cateterismo, para a qual se aguardava 24 horas se fosse de urgência, a espera atualmente é de sete dias.

Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio, Alexandre Telles não tem dúvidas de que a falta de profissionais é o principal gargalo. As contratações temporárias, diz ele, cobrem parte do desfalque, mas impõem uma alta rotatividade, prejudicial em serviços de alta complexidade:

— Há questões estruturais, como leitos fechados por causa de goteiras. Mas não adianta resolver esse problema se não houver profissionais de saúde.

Mônica Armada, presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio, corrobora com esse diagnóstico

— Muitos serviços foram desmontados. A estrutura tecnológica desses hospitais se tornou obsoleta.

Ligado ao Ministério da Saúde, o Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) afirma que participa de reuniões para levantar as demandas assistenciais, e desta forma, “priorizar as linhas de cuidado, bem como, necessidade de leitos e serviços especializados a serem investidos”. Além disso, diz que é realizado o “dimensionamento dos recursos humanos dos seis hospitais federais para fortalecer algumas linhas de cuidado, que necessitam de uma equipe multidisciplinar”.

Já a direção do Hospital Federal do Andaraí esclarece que o setor de emergência no quarto andar passa por adequações, a fim de cumprir o que exige o Cremerj. Em relação ao HGB, diz que a unidade realiza normalmente exames de imagem e consultas ambulatoriais, recebendo pacientes regulados pelo município do Rio e pelo estado.

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