Descrição de chapéu Financial Times genética

Geneterapias podem curar doenças, mas chegam a custar R$ 10 mi por dose

Esse tipo de tratamento concentra os medicamentos mais caros do mundo

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Jamie Smyth Hannah Kuchler
Nova York e Londres | Financial Times

Rob Schroeder passou a maior parte da vida tendo que levar injeções regulares de fator de coagulação sanguínea para combater as hemorragias descontroladas provocadas pela doença genética hemofilia B.

Mas sua vida foi transformada quatro anos atrás, quando ele se voluntariou para ser um dos primeiros pacientes a fazer um ensaio de um tratamento genético experimental chamado Hemgenix.

"Desde o tratamento, não tive mais sangramento algum. Nada. Com este tratamento eu realizei meu maior sonho", disse Schroeder, representante farmacêutico de Monclova, Ohio, ao Financial Times.

Zolgensma, a geneterapia contra a atrofia muscular espinhal, que foi o medicamento mais caro do mundo quando chegou ao mercado, em 2019 - Divulgação

No mês passado, a FDA (agência americana que regula alimentos e medicamentos) aprovou o Hemgenix, desenvolvido pela CSL Behring e UniQure e administrado numa dose única por infusão intravenosa.

Trata-se do quinto tratamento genético contra doenças raras a receber o sinal verde dos reguladores americanos desde 2017, destacando o potencial dessa nova classe de medicamentos de tratar e em alguns casos, curar doenças raras, cânceres e outras condições.

As geneterapias, que operam adicionando um novo gene ao corpo ou reparando um gene que passou por mutação, podem melhorar problemas de saúde drasticamente, resolvendo sua causa original, normalmente por meio de um tratamento único. Mas são medicamentos complexos que podem ter efeitos colaterais perigosos e que são vendidos a preços extremamente altos.

O Hemgenix da CSL custa US$ 3,5 milhões (R$ 18,5 milhões) por dose, sendo o fármaco mais caro do mundo.

Desenvolvidos pela biotech Bluebird Bio, de Cambridge, Massachusetts, o Skysona e o Zynteglo, geneterapias contra uma doença cerebral infantil rara e uma doença sanguínea congênita, são o segundo e terceiro fármacos mais caros no mercado, vendidos a respectivamente US$ 3 milhões (R$ 15,8 milhões) e US$ 2,8 milhões (R$ 14,8 milhões) a dose.

Especialistas em saúde avisam que o custo alto das geneterapias pode limitar a disposição das seguradoras públicas e privadas de cobri-las, tornando-as inacessíveis a muitos pacientes.

Com mais de mil geneterapias e terapias celulares em fase de ensaios clínicos, há a preocupação de que os sistemas de saúde possam vergar sob o peso dos custos de curto prazo de atender à demanda por tratamentos.

No ano passado a Bluebird Bio tirou do mercado europeu o Zynteglo, geneterapia de dose única para a doença do sangue talassemia, depois de não ter conseguido persuadir os governos europeus a cobrir seu preço de US$ 1,8 milhão (R$ 9,5 milhões). A empresa disse a analistas que os pagadores europeus não desenvolveram sua abordagem à geneterapia de uma maneira que valorizasse a inovação. Ela descreveu elementos do sistema europeu como sendo "francamente quebrados" e "inviáveis" para investimento.

Com sua saída da Europa, a Bluebird foi obrigada a reduzir seus custos, cortando 30% de seu quadro de profissionais, e agora está investindo nas vendas nos Estados Unidos, onde os reguladores aprovaram o Zynteglo em agosto.

Miguel Forte é presidente da Sociedade Internacional de Terapia Celular e Genética, um grupo de médicos clínicos, pesquisadores e parceiros industriais que apoiam o desenvolvimento desses medicamentos. Ele disse que a retirada de um tratamento aprovado é decepcionante e que, se isso se repetir, será causa de "preocupações graves".

"Acho que uma discussão sobre a acessibilidade dos tratamentos é essencial. Precisamos assegurar que esses medicamentos inovadores estejam disponíveis aos pacientes e também temos que continuar a aprender sobre eles e a desenvolver novos produtos."

Em contraste, o Zolgensma, a geneterapia da Novartis contra a atrofia muscular espinhal, que foi o medicamento mais caro do mundo quando chegou ao mercado, em 2019, vendeu bem nos primeiros anos. As vendas subiram 36% em 2021, quando a empresa farmacêutica suíça expandiu seu acesso à Europa e aos mercados emergentes. Mas caíram 15% no último trimestre, algo que a empresa atribuiu a um desaquecimento, mas entrou em novos mercados mesmo assim.

A Novartis disse não acreditar que a queda nas vendas tenha tido ligação com as informações sobre a morte de duas crianças que haviam tomado o fármaco.

Os produtos de geneterapia podem ser caros, mas, segundo Forte, trazem grandes benefícios aos pacientes e sistemas de saúde. A natureza única dessas terapias curadoras melhora a qualidade de vida de pessoas que sofrem de doenças raras e pode poupar dinheiro no longo prazo, por reduzir ou eliminar a necessidade de tratamento médico, ele acrescentou.

"Se não conseguirmos quadrar o círculo relativo aos custos e reembolsos, deixaremos de oferecer as oportunidades certas aos pacientes."

A indústria biofarmacêutica diz que os preços altos são necessários para cobrir os custos de desenvolvimento das geneterapias, que chegam a US$ 5 bilhões (R$ 26,5 bilhões), mais ou menos cinco vezes os custos dos medicamentos tradicionais. E os mercados para esses fármacos geralmente são pequenos. Além disso, os processos complexos de manufatura e regulatórios levam a longos períodos de espera até os tratamentos serem disponibilizados aos pacientes.

No ano passado, investidores e empresas investiram o valor recorde de US$ 22,7 bilhões (R$ 120,1 bilhões) em terapias celulares, genéticas e de engenharia de tecidos, contra US$ 19,9 bilhões (R$ 105,3 billhões) um ano antes, segundo a Alliance for Regenerative Medicine, um grupo de lobby que representa pequenas e grandes empresas do setor.

As vendas de tratamentos genéticos e celulares são relativamente modestas por enquanto, tendo chegado a US$ 4 bilhões (R$ 21,2 bilhões) em 2021, mas estão previstas para alcançar US$ 45 bilhões (R$ 238,2 bilhões) até 2026 com a aprovação de dezenas de outros tratamentos, segundo a firma de inteligência de mercado Evaluate Pharma. Mas alcançar esse crescimento das vendas depende da disposição de governos, seguradores e outros pagadores do setor da saúde de países ricos de cobrir o custo dos tratamentos.

Merith Basey, diretora executiva do grupo de defesa de pacientes Patients For Affordable Drugs Now, disse: "Nosso sistema de saúde não está em condições financeiras de pagar o preço que as empresas farmacêuticas pedem por esses novos fármacos, não importa quão revolucionários sejam".

"O Hemgenix é uma inovação que pode salvar a vida de pacientes que têm condições de comprá-lo, mas essa inovação não tem valor algum para quem não pode pagar por ela."

Bob Lojewski, o vice-presidente sênior da CSL e gerente geral para a América do Norte, disse que o preço de US$ 3,5 milhões do Hemgenix se justifica porque trata-se de possivelmente "o tratamento mais eficaz do mundo" e vai gerar grandes economias no longo prazo. Ele disse ainda que haverá alguns descontos para convênios médicos e pagadores.

"É lamentável que o preço vire manchete, no lugar da segurança, eficácia e promessa da terapia", ele disse.

Segundo ele, o tratamento de pacientes com hemofilia B ao longo de toda a vida implica em custos superiores a US$ 20 milhões (R$ 105,8 bilhões).

Uma revisão do Instituto de Revisão Clínica e Econômica, órgão regulador independente de medicamentos, concluiu que um preço de US$ 2,96 milhões (R$ 15,6 milhões) milhões do Hemgenix se justifica devido à sua eficácia. Disse que os pacientes tratados com sucesso parecem estar curados, pelo menos por um período do tempo. Mas o instituto avisou que ainda há incerteza considerável quanto a se o sucesso do tratamento se mostrará duradouro no longo prazo.

O AHIP, grupo que representa mais de 1.300 empresas que fornecem seguro médico a 200 milhões de americanos, disse que seus membros não são avessos a pagar por medicamentos de geneterapia, desde que sejam comprovadamente eficazes e com boa relação custo-benefício.

Segundo a entidade, os convênios médicos provavelmente anunciarão restrições para garantir que as terapias sejam acessíveis apenas aos pacientes aos quais são mais adequadas. Além disso, disse que os copagamentos de pacientes serão comuns.

"No caso do Hemgenix, há muito a seu favor. É uma cura. É uma dose e acabou. E ajuda um setor da população, pessoas com hemofilia B, que não têm muitas opções de tratamento", disse Sergio Santiviago, do AHIP.

Ele disse que as seguradores estão estudando opções de pagamento baseado no risco, para superar as dificuldades de cobrir tratamentos caros que na maioria dos casos não comprovaram sua validade por prazos mais longos. Por exemplo, os membros do AHIP acordaram um esquema de cobertura do Zynteglo pelo qual a Bluebird Bio terá que reembolsar 80% dos custos se os pacientes voltarem a precisar de transfusões sanguíneas menos de dois anos após o tratamento.

Mas, segundo Santiviago, o quadro se complica quando grande número de pacientes pode ter direito a tratamentos que custam milhões de dólares, especialmente se não houver evidências convincentes de sua eficácia.

Um teste importante está no horizonte com a aprovação nos EUA prevista para 2023 de uma geneterapia contra a anemia falciforme desenvolvida pela Vertex Pharmaceuticals e a Crispr Therapeutics. Cerca de 100 mil americanos têm anemia falciforme, contra apenas 30 mil que sofrem de hemofilia B.

Um estudo que avaliou o impacto das geneterapias sobre os orçamentos estaduais nos EUA, publicado no ano passado na revista especializada Jama Pediatrics, concluiu que uma geneterapia eficaz para a anemia falciforme encerraria problemas de custo para vários planos de seguro do Medicaid.

"Os tratamentos de preço muito alto recebem muita atenção, mas, do ponto de vista dos pagantes, o que geralmente tem peso maior é o número de pacientes", disse Patrick DeMartino, médico especializado no tratamento de crianças com doenças do sangue e co-autor do estudo da Jama Pediatrics.

"Do ponto de vista do acesso dos pacientes e da defesa deles, se houvesse demora no acesso a um tratamento por um problema de restrições do pagador, seria um pesadelo de relações públicas. Prejudicaria as pessoas, mas também seria muito prejudicial à imagem do pagador."

Tradução de Clara Allain

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