Assim age o gigantesco lobby global da carne

Maquiagem de dados. Financiamento de “pesquisas” enviesadas. Manipulação da opinião pública. Megafrigoríficos como a JBS repetem corporações do petróleo e tabaco e tentam bloquear ação das sociedades contra o colapso climático

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Por Jan Dutkiewicz e Spencer Roberts em The New Republic | Tradução: Maurício Ayer

Durante anos, os produtores de carne trabalharam loucamente nos bastidores para manter a redução da produção e do consumo de carne fora das discussões sobre política climática. O primeiro esboço do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas de 2021 sobre a mitigação das mudanças climáticas recomendou a mudança para dietas e sistemas agrícolas à base de vegetais. Delegados enviados pelo então presidente brasileiro Jair Bolsonaro – que presidiu uma queima em massa da floresta amazônica, em parte realizada por produtores de carne bovina – atuaram e conseguiram que essa frase fosse removida. A hesitação do IPCC diante do lobby permitiu que a mesma ambivalência em relação à agricultura fosse transportada para a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima naquele mesmo ano, que se concentrou em estabelecer um plano para reduzir as emissões de metano: apesar de a pecuária emitir um terço do metano global e que é impossível cumprir as metas de emissões sem abordar o setor de alimentos, a questão da contribuição dessa indústria para a mudança climática causada pelos seres humanos foi manifestamente retirada da carta de políticas – ainda que as comidas oferecidas aos participantes da conferência viessem junto com uma calculadora de carbono.

O público está bem ciente, atualmente, do obstrucionismo dos lobistas dos combustíveis fósseis na política climática. Sabemos, por exemplo, que houve mais lobistas de combustíveis fósseis do que os delegados de qualquer país na COP26 e que o número aumentou ainda mais na COP27 deste ano. É mais difícil calcular os números daqueles que representam a indústria da carne. Sua influência, no entanto, é evidente.

O plano que o presidente Biden anunciou na sexta-feira na COP27 deste ano – que, para seu crédito, coloca a comida na agenda – estabeleceu metas específicas para energia, mas foi visivelmente vago na área da agricultura. O presidente apenas disse que pretendia expandir globalmente os programas domésticos do país para uma agricultura “inteligente para o clima” – programas que, conforme disse anteriormente o secretário da Agricultura, Tom Vilsack, não exigiriam nenhuma redução na produção de carne. Isso está de acordo com as promessas a respeito do metano do ano passado, que estabeleceram novos padrões estritos para os setores de energia e resíduos, mas abordaram a agricultura “por meio de inovação tecnológica, incentivos e parcerias” com empresas como Bayer e JBS, um padrão duplo que foi celebrado por lobistas da indústria da carne.

À medida que as críticas à pecuária e sua contribuição para a mudança climática aumentaram nos últimos anos, também aumentou a contra-ofensiva da indústria. Baseando-se no roteiro desenvolvido pela indústria de combustíveis fósseis em sua campanha de 50 anos para semear dúvidas sobre o papel dos combustíveis fósseis na mudança climática, a indústria da carne está agora combinando ciência duvidosa com estratégia de relações públicas para convencer a todos, do público aos líderes mundiais, que devemos fazer qualquer coisa outra que não a única coisa que os cientistas concordam que efetivamente precisamos fazer: reduzir o setor de carne.

Uma das táticas mais eficazes empregadas pelo lobby da carne é o uso de métodos de contabilidade criativos para obscurecer seu impacto climático. Como alguns gases de efeito estufa são mais fortes do que outros, ao quantificar as emissões, os climatologistas usam um quociente chamado potencial de aquecimento global, ou GWP, para resumir tudo a um único número: equivalente de dióxido de carbono, ou CO2e. Como gases como o metano contribuem para o aquecimento rápido, mas se decompõem na atmosfera, o GWP muda dependendo do período de tempo. Por exemplo, enquanto o potencial de aquecimento global do metano em 100 anos, GWP100, é 28 vezes maior que o do dióxido de carbono, em 20 anos, o metano é aproximadamente 86 vezes mais poderoso que o CO2. Normalmente, o número citado é o referente a 100 anos, mas muitos climatologistas afirmam que isso minimiza a importância de reduzir a poluição de metano e óxido nitroso no futuro imediato, pois não temos um século para barrar as mudanças climáticas.

Os maiores emissores de metano, incluindo a indústria da carne, não encerra aí sua tática de minimizar os danos do metano. Em vez de usar o valor GWP100, que já subestima o aquecimento causado pelo gás metano, eles preferem um diferente: GWP*. O GWP* foi desenvolvido porque, embora o GWP seja a ferramenta universal para contagem de emissões de um país, indústria ou empresa, ele não funciona bem para modelagem, pois não consegue capturar a transitoriedade de gases como o metano. O novo quociente, GWP*, é uma ferramenta para prever a mudança de temperatura global. Como o planeta não aquece mais quando os níveis de metano estão estáveis, o GWP* de um nível de metano constante é zero. A indústria da carne rapidamente percebeu que isso significava que, enquanto as emissões de metano não aumentassem, ela poderia reivindicar que não estava contribuindo para o aquecimento global, e começou a fazer lobby para usar o indicador como uma métrica de prestação de contas – sendo que não foi para isso que ele foi projetado, em hipótese alguma. Direcionando milhões de dólares para esse fim por meio de canais secundários, o lobby do agronegócio animal financiou a promoção do GWP* como o novo padrão de medição de gases de efeito estufa, por meio de grupos que vão desde o CLEAR Center da U.C. Davis até os lobistas da COP. Desafiar o cálculo climático convencional ajuda a indústria da carne não apenas a minimizar suas emissões, como também a semear a suspeita de que as estatísticas do IPCC estariam injustamente difamando a indústria.

A segunda linha de defesa que a indústria da carne vem promovendo concentra-se em soluções tecnológicas para os danos ambientais causados ​​pela pecuária. No caso do metano, a indústria se apressou em financiar pesquisas sobre aditivos alimentares à base de algas marinhas para vacas, com o objetivo de reduzir o metano produzido por seus sistemas digestivos. Mas enquanto a indústria realiza estudos piloto estimando o potencial de redução de emissões de tais aditivos em até 80% na fase de confinamento, não menciona que, considerando as emissões em todo o ciclo de vida, isso se traduz em cortes de apenas cerca de 9%. A indústria é rápida em inserir matérias positivas na imprensa sugerindo que tudo o que será necessário para tornar as vacas amigas do clima é um pouco de algas ou máscaras de captura de metano para vacas, mas essas correções estão longe de ser amplamente viáveis ​​ou escaláveis. Em todos esses casos, as melhorias ambientais necessárias não podem ser alcançadas por soluções rápidas. No entanto, ao levar agressivamente sua mensagem aos jornalistas e às empresas, a indústria da carne prolongou o debate sobre a sustentabilidade ambiental da carne, sugerindo que os impactos ambientais da pecuária não são aspectos essenciais, apenas uns bugs inconvenientes.

No entanto, talvez a tática mais flagrante do lobby da carne seja a de vender a si mesmo como a solução para os problemas que cria. As fazendas e os confinamentos industriais, ao concentrarem milhares de animais em espaços restritos, também criam enormes lagoas de esterco geradoras de metano, que é vazado ou despejado diretamente em cursos d’água, contribuindo para a formação das chamadas zonas mortas que se expandem dos deltas dos rios. Mas, embora os cientistas enfatizem a necessidade de reduzir os resíduos de origem animal, a indústria conseguiu obter isenções fiscais muito lucrativas para aumentar esses resíduos, divulgando ostensivamente os benefícios ambientais do refino do metano em biogás a partir do esterco, convertendo os detritos em fluxo de renda. Devido ao lobby bem-sucedido, os digestores de metano foram classificados pela Lei de Redução da Inflação de Biden como geração de energia renovável, que se completa com enormes créditos fiscais a incentivar a expansão das fábricas de laticínios. A indústria, entusiasmada, passou a projetar que “o leite se tornou o subproduto da produção de esterco!”.

Da mesma forma, o chamado cultivo de carbono tornou-se uma vaca leiteira para o setor pecuário. Enquanto, internacionalmente, painéis de especialistas e até mesmo pesquisas do próprio setor mostram que o sequestro de carbono para o solo não é persistente em nenhuma escala de tempo significativa, a indústria de carne insiste que a pecuária, com o manejo adequado, pode se tornar negativa em carbono. Os créditos de carbono agora são negociados como ações em mercados especulativos, com o apoio do agronegócio e da indústria do petróleo como uma ferramenta para a redução das emissões. O USDA fornece calculadoras de crédito de carbono para ajudar os pecuaristas a se qualificarem e comprarem – ajudando a eles, ou a quem quer que compre seus créditos, a apagar suas emissões com compensações de carbono baseadas em suposições não comprovadas e dados auto-referenciados. Tal como os aditivos de algas marinhas, o cultivo de carbono gera pilhas de matérias positivas na imprensa para o setor. E ao fazer a “lavagem verde” de suas operações como soluções climáticas, os setores de carnes e laticínios podem enquadrar seus críticos como hostis não apenas às suas indústrias, mas ao próprio progresso climático.

Nesta batalha sobre política e opinião pública, as alegações científicas são empunhadas como armas e a própria indústria da carne é uma forja de armas, financiando a pesquisa e os cientistas dispostos a lutar pelo seu lado. Tanto a indústria do tabaco quanto a do combustível fóssil gastaram pesadamente com cientistas e especialistas que promovessem pesquisas e argumentos para defender seus interesses – às vezes até usando os mesmos especialistas. A indústria da carne – que começa com a vantagem de já ter laços estreitos com programas universitários de agricultura e zootecnia – investe em pesquisa sob a bandeira de reduzir sua pegada de carbono. No entanto, essa pesquisa também é usada – sem dúvida, efetivamente projetada – para desafiar as críticas no tribunal da opinião pública. Uma recente investigação bombástica do Greenpeace, intitulada Unearthed [Desenterrado], por exemplo, detalhou como um grupo de lobby de alimentação de gado concebeu e financiou um centro de comunicações na U.C. Davis e o utilizou para espalhar desinformação sobre o impacto da indústria da carne no clima. No cenário global, o setor pecuário exerce influência considerável em instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), que promove a indústria buscando parcerias público-privadas para o desenvolvimento do agronegócio, ao contrário da abordagem para a energia promovida por outras organizações da ONU.

Esse problema vai além de um único estudioso ou mesmo de um único centro de pesquisa. Em 2017, pela primeira vez em quase um século, o financiamento da indústria superou os subsídios públicos para a maioria das pesquisas nos Estados Unidos. O longo jogo corporativo para suplantar a ciência pública conseguiu transformar não apenas a produção, mas a cultura da academia. Os pesquisadores ficam relutantes em criticar até mesmo os mais flagrantes escândalos de corrupção científica quando sabem que suas próprias bolsas de pesquisa também vêm de instituições privadas. Esse padrão corrói a confiança pública nas instituições científicas, o que, por sua vez, beneficia o setor privado: ao criar espaço para a incerteza, as corporações que financiam a desinformação sobre seus produtos podem exigir assentos nas mesas políticas e a representação de “ambos os lados” nas matérias da mídia.

Quando a ciência tornou-se inequívoca de que os cigarros e o fumo passivo eram cancerígenos, a indústria do tabaco procurou desafiar essas descobertas, financiando suas próprias pesquisas e fazendo lobby para lançar dúvidas sobre o consenso científico emergente. Esse atraso na regulamentação significativa provavelmente causou milhões de mortes evitáveis. Essas táticas de atraso e de agnotologia – a ignorância produzida deliberadamente, diferente da ausência orgânica de conhecimento – foram adotadas pela indústria de combustíveis fósseis, que regularmente emprega lobistas e cientistas para desafiar o consenso sobre o papel dos combustíveis fósseis na geração das mudanças climáticas. Essas táticas de atraso contínuo ajudaram a impedir a regulamentação vinculante e nos colocaram em rota que nos levará a não cumprir a meta de manter o aquecimento em 1,5ºC. Os historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway apelidam aqueles que desafiam o consenso científico e turvam a discussão pública em nome de indústrias nocivas de  “comerciantes de dúvidas”. O jogo deles não é necessariamente uma negação total, mas um equívoco ativo e perpétuo. O objetivo é arrastar o debate e introduzir dúvidas onde não deveriam existir para defender o status quo.

Em meio a crises climáticas e de extinção globais impulsionadas em parte pela pecuária, os comerciantes de dúvidas sobre a carne tiveram sucesso total em seu objetivo: seus interesses se infiltraram nos mais altos escalões da política global e suas ideias se enraizaram em discussões públicas sobre o sistema alimentar. Nos últimos anos, os ativistas conquistaram progressos identificando e diminuindo a influência da indústria de combustíveis fósseis na mídia e na academia – por meio de campanha de desinvestimento, rastreando contribuições políticas, exigindo coberturas de notícias e mais. Agora devemos fazer o mesmo em relação à carne. A boa notícia é que conhecemos a estratégia deles. A má notícia é que corremos contra o tempo.

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