Hilda Hilst e o feminino: a santa, a saia e o sexo

Suas obras mais obscenas inscrevem o sexo no sagrado. Talvez porque a nudez da mulher, mesmo quando parece “mostrar tudo”, o que mostra é o nada. E a saia, que pulsa aquilo que esconde, se faz metáfora do transporte entre a vida e a morte

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Por Eliane Robert de Moraes na BVPS

Título original: A santa, a saia e o sexo: três notas sobre o feminino em Hilda Hilst, publicado pelo blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) em sua Ocupação Mulheres 2023.
E leia outros textos da coluna da BVPS no Outras Palavras.

1.

Ao ser indagada sobre as razões de sua incursão pelos domínios da pornografia, por ocasião do lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda Hilst não hesitou em responder: “A santa levantou a saia”. O ano era 1990 e ela acabara de publicar o primeiro título de sua trilogia obscena, considerado uma virada radical na sua literatura. Não foram poucos os leitores, amigos e críticos a se declararem perplexos diante da “nova fase” da autora que, após quatro décadas dedicadas a uma obra “séria”, passava a praticar o que lhes parecia ser a mais deslavada licenciosidade. Afinal, como compreender aquela constrangedora ficção, que narrava as memórias sexuais de uma menininha de oito anos de idade sem o menor pudor e sem qualquer reserva no emprego de palavras obscenas?

A resposta lapidar da escritora, dada numa entrevista, dizia muito mais do que se podia ouvir naquele momento. Tal foi o alvoroço provocado pelas imoralidades do diário de sua personagem infantil, que a frase passou batida. O escândalo ofuscou não só a referência à saia, mas também suas relações com a figura da santa, que remetia a questão ao âmbito do sagrado.

Isis-Afrodite ou estatueta funerária de uma cortesã sagrada. Terracota pintada, 330-30 ac. Imagem retirada do site Tendências do Imaginário

Bem mais que uma frase de efeito, a imagem evocada por Hilda Hilst tem longa história, na qual se reconhecem obscuras representações plásticas da antiguidade. É provável, inclusive, que a autora tivesse familiaridade com uma delas: no caso, uma estatueta da época romana que pertenceu a Jacques Lacan, cuja reprodução se encontra no livro O erotismo, de Georges Bataille. Leitora atenta do pensador francês, ela talvez tenha lançado um olhar curioso para a figura da cortesã sagrada que, vestindo trajes solenes, levanta a pesada saia com as próprias mãos para exibir sua nudez. A composição se impõe pela notável harmonia dos volumes, estabelecendo um perfeito equilíbrio entre a cabeça – que ostenta um enorme ornamento – e o baixo corporal, que deixa o sexo à mostra.

Por certo, não terá escapado à poeta de Amavisse que essa imagística instaura uma correspondência de base entre a matéria sexual e o conteúdo religioso. Aproximação que reaparece sem cessar em sua literatura, cujas tópicas centrais, desde o primeiro livro de 1950, se circunscrevem no continente do sagrado. É bem verdade que tal dimensão ganha variadas configurações na escrita da autora, assumindo tantas facetas quantos são os incontáveis nomes que essa associação ganha ao longo da sua produção literária. Todavia, é igualmente verdadeiro que, quanto mais sua obra avança no tempo, mais e mais o sagrado se associa ao erotismo, numa confluência sem retorno. 

Tudo acontece, portanto, como se a escritora ampliasse cada vez mais suas vias de acesso aos territórios do sagrado, pactuando com o eu lírico dos poemas de Via espessa na convicção de que “mora na morte / Aquele que procura Deus na austeridade”. Pacto que, nesse livro de 1989, já se traduz claramente na imagem de uma “luz que nasce da blasfêmia”, tornando-se ainda mais ostensivo depois das suas incursões obscenas, como testemunha o protagonista de seu último título, Estar sendo. Ter sido, de 1997: “blasfemando somos um pouco santos, sabias?”.

Ora, é precisamente nesse ponto de toque entre a baixeza da blasfêmia e a elevação da santidade que se pode reconhecer a obscura figura da “sibilina serpente” evocada na novela Matamoros, cujos contornos sinuosos remetem aos segredos que se escondem sob a misteriosa saia. Incluída no volume Tu não te moves de ti, de 1980, essa narrativa se alimenta de matrizes bíblicas, o que por certo permite associar sua enigmática víbora ao princípio do mal encarnado na mulher. Mas a criatura ganha ainda maior complexidade quando aproximada às sibilas, profetizas antigas a quem se atribuía a intuição das verdades superiores. Escusado dizer que o predomínio das sibilantes só faz reforçar os nexos entre a serpente e a sibila, estendendo-se aos outros termos dessa série que inclui a saia, a santa e o sexo.

2.

Há muitas saias na obra de Hilda Hilst. Há muitas saias saracoteando em suas páginas, o que não deixa de ser curioso numa escritora que parece ignorar, e por vezes até desdenhar, as afirmações da feminilidade. São vários os textos que não poupam o próprio sexo da autora, resvalando em ironias nada sutis, como esta proferida pelo narrador de Contos de Escárnio, Textos grotescos (1990): “Ó, as mulheres! Que sensíveis e doces, que lúdicas ladinas imaginosas e torpes! Mulheres!” Ataques assim são comuns não só na prosa de ficção hilstiana, mas também em entrevistas suas nas quais ecoam considerações igualmente ferinas quanto à condição da mulher.

O que faz, então, essa inequívoca peça do vestuário feminino nos seus escritos?

Não raro, a presença da saia parece se limitar a uma notação prosaica. É o que se lê, por exemplo, em “Agda”, conto de abertura de Qádós (1973), em que a personagem se abandona ao efêmero deleite que um simples ornamento pode precipitar:  “você pode me fazer a bainha desta saia? E se der tempo coloca um friso dourado aqui, olha já comprei, fica bem não é?”. Ou, na direção oposta, o que se confirma em A obscena senhora D (1982), numa passagem que descreve a vida besta de mais um dia-a-dia sem tréguas: “vai até a pia, lava-se, enxuga-se na saia ensebada, olha entre as frestas da janela, volta-se, ajoelha-se no vão da escada”. No mais das vezes, porém, a saia ostenta o que esconde, como se testemunha em Cartas de um sedutor (1991), que oferece uma variedade de exemplos nesse sentido. Do desconcertante desnudamento da velha – “Olhou-me a figura ainda esguia mas bastante deteriorada, pediu-me que levantasse a saia, levantei, olhou aturdida minhas coxas murchas” – à exuberante cena da escada onde o narrador flagra a bordadeira Antônia “sentada de pernas abertas, a saia azul turquesa enrolada na cintura”, o tempo forte das saias hilstianas sempre supõe o que pulsa por baixo do pano.

Seria o caso de se perguntar, então, o que realmente mostra um corpo nu de mulher.

A rigor, nada. A nudez feminina nada mostra, sobretudo quando está supostamente a “mostrar tudo”, e esse talvez seja o seu escândalo maior. Afinal, o sexo da mulher, cavidade oca e voltada para dentro, só deixa ver o vazio que se abre no seu corpo — aliás, o mesmo que repousa na origem e no horizonte de toda existência. Recorde-se que as interpretações psicanalíticas insistem nas convergências entre a visão dos genitais femininos e o temor da castração, sublinhando que, no horizonte de suas representações, repousaria sempre um terror primitivo, que traduz o pavor da ameaça de dissolução absoluta do ser. A nudez feminina mostra o nada.

Haveria então alguma outra razão para a estatueta da cortesã sagrada, reproduzida no livro de Bataille, ser uma peça funerária?

Não surpreende, pois, que a evidência do nada ganhe sua maior eloquência quando a saia levantada pertence a uma santa. Presente em diversas obras plásticas da antiguidade, uma das imagens mais arcaicas da mulher sagrada que ergue a saia para expor o sexo é dada por Baubó, personagem obscura da mitologia grega, que ora se apresenta como um espectro noturno ou uma espécie de ogra assemelhada às divindades infernais, ora na pele de uma velhinha bondosa e engraçada. É sob este aspecto que ela aparece para atenuar o sofrimento de Deméter, em luto pela perda da filha: com seus gestos indecentes, Baubó consegue romper o jejum da deusa, provocando nela uma explosão de riso.

O episódio é de particular interesse quando aproximado a certas passagens de Hilda Hilst, nas quais se reconhecem semelhantes desdobramentos do motivo. Aproximação importante, uma vez que circunscreve a singularidade do imaginário da saia levantada na sua obra: ou seja, se a arte e a literatura tendem, com frequência, a insistir nos paralelos entre a visão da nudez feminina e a fantasmagoria da morte, no caso da escritora, tal associação excede o habitual sentido trágico e se expande em direções inesperadas. Entre elas, ganha especial destaque a vertente do riso que se torna extremamente produtiva nas mãos da autora, como ocorre no mito de Baubó. Não cabe, no espaço deste texto, um desenvolvimento do tema, sobre o qual haveria muito a se dizer, mas vale ao menos apontar um exemplo, que interessa aqui de perto. Se o vazio do sexo feminino por vezes ganha contornos graves na produção hilstiana, ele também se apresenta com frequência na qualidade de matéria risível, como confirma uma vez mais a senhora D: “afinal, o que você pensa que são as mulheres em geral? buracos, isso o que elas são. buracos macios. às vezes não, ásperos, quase espinhudos”.  

Tudo acontece, portanto, como se a literatura de Hilda Hilst trabalhasse em regime integral para reforçar os nexos entre a serpente e a sibila, associando a dissimulação irônica de uma aos saberes transcendentais da outra, para resguardar uma ambivalência que não cessa de produzir sentidos sobre nossa humana condição. Se assim for, as palavras de Vladimir Nabokov sobre Gógol caberiam perfeitamente à poeta brasileira, na medida em que seus escritos também nos fazem lembrar que “a diferença entre o lado cômico das coisas, e seu lado cósmico, depende apenas de uma sibilante”.

3.

Não há como ignorar a recorrente associação entre os genitais femininos e a morte quando se examina o imaginário de uma autora que sempre se declarou obcecada pela ideia de finitude. Afinal, é essa mesma associação que repousa na base de definições da mulher como “continente negro” (Freud), como “sexo trágico” (Bataille), ou como protótipo do “insignificante” (Lacan), entre outras. Mas Hilda Hilst não seria a grande escritora que é se sua obra se esgotasse na coincidência com saberes já instituídos. Consciente dessa afinidade profunda, a persona lírica de Da morte. Odes mínimas – que se refere à morte como “minha irmã” – enfrenta o desafio de ornamentar o tecido do tempo e, tal qual uma Penélope moderna, se põe a sonhar com a derradeira saia:

Uns barcos bordados
No último vestido
Para que venham comigo
As confissões, o riso
Quietude e paixão
De meus amigos.
Porque guardei palavras
Numa grande arca
E as levarei comigo
Peço uns barcos bordados
No último vestido
E vagas
Finas, desenhadas
Manso friso
Como as crianças desenham
Em azul as águas.
Uns barcos
Para a minha volta à Terra:
Este duro exercício
Para o meu espírito.

Imagem admirável, a dos “barcos bordados no último vestido”, que se repete três vezes no poema para redimensionar o valor da saia no interior da obra hilstiana e alçá-la ao patamar de suas metáforas mais vigorosas. Com efeito, nesses versos, o traje já não mais se apresenta como signo do que oculta, do que não é, para enfim dizer o que é – e a que veio. Aqui a saia é metáfora soberana e, decididamente, no sentido maior do termo: meio de transporte entre a vida e a morte. Daí a insistência no friso – este, manso; aquele, dourado, escarlate, púrpura – que vem iluminar seus contornos, não na qualidade de aparato ilusório, mas como o mais pungente testemunho de uma santa que se dispõe a exibir sua nudez enfeitada.

A imagem transcende qualquer intento de representação do sexo feminino, embora a saia nunca deixe de evocá-lo. Mas, se o faz, e ainda que indiretamente, é para convertê-lo em um observatório a partir do qual se pode contemplar qualquer prisma do universo, incluindo o que está aquém ou além do próprio sexo. Nesse sentido, pode-se dizer da escritora o mesmo que Italo Calvino afirma sobre todos os autores que, mediante os símbolos sexuais, procuram fazer falar alguma outra coisa, uma vez que “essa coisa pode ser redefinida, em última instância, como outro eros, um eros último, fundamental, mítico, inalcançável”.

Mais que tudo, a metáfora de Hilda Hilst revela sua notável aposta no poder transformador da arte que, até o derradeiro minuto, promete transportar o eu lírico para um lugar outro, inviolável e secreto, onde a morte finalmente se mostra abordável. Nessa passagem, serpente e sibila se fundem em uma só criatura, que já não mais pertence ao mundo natural nem ao divino, porque se dobra por inteiro aos artifícios mais humanos — a saber, o bordado, o barco e a poesia.                           

Referências

BATAILLE, Georges. (2013). O erotismo, tradução de Fernando Scheibe, Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

CALVINO, Italo. (2009). Assunto Encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund. (1988). Análise leiga (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1926).

HILST, Hilda. (2017). Da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras.

HILST, Hilda. (2018). Da Prosa, (Vols. 1 e 2). São Paulo: Companhia das Letras.

MORAES, Eliane R. (1999). “Da medida estilhaçada”. In: Cadernos de literatura brasileira – Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n.8, out. 1999.

LACAN, Jacques. (2009). O seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

NABOKOV, Vladimir (1994). Nicolai Gógol – uma biografia, tradução de Terezinha B. Mascarenhas, São Paulo: Ars Poética.

VERNANT, Jean-Pierre. (1988). A morte nos olhos, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro.

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