A Espanha vai às ruas pela Saúde

“Austeridade” pós-2008 derrubou salários, colocou sistema em estresse e provocou colapso do atendimento. Em Madri, governo local de direita agrava a crise propondo privatizações. População une-se aos profissionais, em grandes protestos

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Nesta quarta-feira, 30/11, profissionais de saúde, entidades, sindicatos e cidadãos voltaram a ocupar as ruas de Madri, enquanto a greve de médicos e pediatras da atenção básica chega a seu 10º dia na região. Tudo começou num domingo, dia 13 de novembro, quando a capital da Espanha presenciou o que pode ter sido o maior protesto de sua história pela Saúde. É o que acredita Carmen González, profissional da área ouvida pelo jornal El Salto. González atua na região da capital espanhola e participa da assembleia em defesa da saúde pública de seu município, Alcorcón. 

Os organizadores do protesto estimam que 670 mil pessoas marcharam pelas ruas de Madri, apesar do governo, criticado pelos manifestantes, contabilizar 200 mil. Aos madrilenhos, juntaram-se pessoas de outros municípios, como Alcorcón, Rivas, Hortaleza, Villaverde e Carabanchel, para defender o sistema público de Saúde. 

Na semana passada, os protestos se espalharam para o sul da Espanha. Cidades como Sevilha e Granada, na região da Andaluzia, presenciaram manifestações que alertaram para o aumento de 25% no encaminhamento de pacientes para hospitais subsidiados – o que alguns especialistas têm chamado de “colapso da atenção primária” no país. Assim como a região de Madri, a Andaluzia é governada pelo Partido Popular (PP), sigla conservadora cuja gestão vem sendo alvo de críticas por parte de manifestantes, médicos e profissionais da saúde. 

As baixas contratações de profissionais para atendimento na atenção básica vêm causando jornadas de trabalho exaustivas, falta de médicos suficientes para a demanda existente, atendimentos precários aos pacientes e aumento de filas. Os protestos exigem não apenas mais contratações, mas também a melhora das condições de trabalho para evitar uma evasão de profissionais para o setor privado. “A realidade da saúde é muito precária e o desânimo entre os profissionais de saúde e os cidadãos está se espalhando”, afirmou Esperanza Morales, médica de família, durante um discurso ao final da marcha em Sevilla, no último sábado, 26/11, que contou com 20 mil pessoas, segundo os organizadores. 

“Não estamos na mesma situação de Madri, mas estamos cada vez mais próximos deles”, disse ao jornal El País Sebastián Martín, médico de família aposentado e porta-voz do Marea Blanca, associação que reúne entidades e sanitaristas em defesa da saúde pública contra a sua privatização. O governo da Andaluzia, liderado por Juan Manuel Moreno Bonilla (PP) após vitória sobre os socialistas do PSOE em junho, tem investimentos recordes em saúde: 4 bilhões de euros desde 2019 com um aumento previsto para o próximo ano de 17,94% em relação a 2022, somado a 30 mil novas contratações

Martín, porém, esclarece: “uma coisa é dizer que o orçamento público para a saúde aumentou, outra coisa é dizer que ele é destinado à saúde pública”, explica. Segundo a Marea Blanca, 33% dos investimentos para 2023 vão para o setor privado na região; 245 mil doentes serão encaminhados a hospitais subsidiados, 25,16% a mais do que em 2022.  Sobre as contratações, Martín lembrou que durante a pandemia foram contratados 20 mil profissionais com fundos da covid, dos quais 8 mil foram demitidos em outubro de 2021; o futuro dos outros 12 mil é incerto, visto que o contrato termina dia 31 de dezembro deste ano. 

A Marea Blanca defende a renovação dos contratos, somada à admissão de mais 4 mil profissionais para cobrir o déficit na atenção primária e outros 4 mil para garantir a abertura de 20 hospitais públicos, “em vez de pagar por infraestruturas privadas”. “Eles dizem que a colaboração público-privada é importante, mas não há colaboração: trata-se de sugar o sangue do público para beneficiar o privado. As seguradoras privadas não querem atender pessoas com mais de 65 anos ou doentes crônicos”, argumentou. 

Apesar da greve e da intensificação dos protestos estar acontecendo agora, a insatisfação é antiga e já levou milhares às ruas em anos anteriores. Assim como países como Itália e Grécia, a Espanha aderiu a medidas de austeridade após a crise de 2008, com o objetivo de cumprir as regras impostas pela União Européia em relação a sua dívida externa. Em 2011, o Parlamento espanhol votou pela reforma da constituição para exigir o pagamento da dívida pública antes de outras despesas do estado, incluindo serviços públicos

Em outubro de 2012, o então ministro da Saúde da Comunidade de Madri, Javier Fernández-Lasquetty (PP), anunciou um plano para reduzir os investimentos no sistema de saúde devido à crise. Se aprovada, a proposta resultaria na privatização de seis hospitais e 27 centros de saúde comunitária em toda a região. Os hospitais seriam terceirizados para entidades privadas, e as práticas de grupos privados teriam prioridade na gestão dos centros de saúde. Além disso, todos os serviços não sanitários – como limpeza e lavanderia – seriam terceirizados. O então governo argumentou que a privatização aumentaria a eficiência. Na época, médicos e entidades se opuseram à proposta, argumentando que um modelo de saúde privada, a exemplo dos Estados Unidos, não oferece benefícios para a sociedade.

Na época, a oposição de profissionais e especialistas a proposta culminou em uma greve em toda a região, com o apoio de pacientes e da população. Após muitos impasses, o plano não vigorou e Fernández-Lasquetty renunciou. As reuniões entre médicos, profissionais e sanitaristas naquele momento, além de parir a Marea Blanca, geraram uma mobilização em prol da saúde coletiva que perdurou até o momento – estendendo-se a encontros constantes em diferentes bairros e municípios ao longo do tempo, envolvendo profissionais de saúde e moradores. Para os manifestantes e grevistas, a única solução é que o governo faça mais contratações; por enquanto, não há acordos fechados. 

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