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Alzheimer: nº de mortes associadas a demências dobra em dez anos; entenda por quê

Brasil registrou quase quatro óbitos por hora por complicações de quadros demenciais em 2022; envelhecimento populacional, pandemia e vulnerabilidade socioeconômica explicam alta

Foto do author Fabiana Cambricoli
Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

Com o acelerado aumento da população idosa e a elevação da expectativa de vida no Brasil, o número de mortes associadas à doença de Alzheimer e a outras demências mais do que dobrou no País em 10 anos, mostra levantamento inédito feito pelo Estadão com base em dados do portal Datasus, do Ministério da Saúde.

Entre 2012 e 2022, o total de óbitos associados a demências cresceu 107%, passando de 15,6 mil para 32,4 mil - o equivalente a quase quatro mortes por hora. Desse total, 27,3 mil ocorreram por complicações do Alzheimer e as outras 5,1 mil estavam relacionadas a outras demências. A alta foi superior à taxa de crescimento da população maior de 60 anos no País - 40% entre 2012 e 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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As mortes associadas a quadros demenciais costumam ocorrer nos estágios mais graves da doença. “Quando o Alzheimer chega a uma fase mais avançada, depois de 10 a 12 anos de evolução, leva ao imobilismo, à dificuldade de deglutição, condições que provocam infecções pulmonares, engasgos frequentes, infecções urinárias. O Alzheimer em si não mata, mas são essas complicações causadas pelo avanço da doença que acabam levando o paciente à morte”, explica Ivan Okamoto, neurologista do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Einstein.

O fato de os pacientes serem idosos e, na maioria das vezes, já conviverem com outras doenças os torna mais vulneráveis a responderem mal a essas complicações. “Geralmente são pacientes frágeis, com muitas comorbidades, com maior risco de quedas com fraturas, entre outros problemas”, diz Rodrigo Rizek Schultz, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) e professor titular de Medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa).

“Na fase grave da doença, o paciente começa a ter déficits motores porque há uma atrofia tão grande do cérebro que ele pode parar de caminhar e falar, ter dificuldades respiratórias, ter perda de equilíbrio”, afirma Diogo Haddad, neurologista e coordenador do Núcleo de Memória do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.

Foi o que aconteceu com Benedito Coelho, morto em 2021, aos 83 anos, 12 anos após o diagnóstico do Alzheimer. “No começo, ele tinha só alguns esquecimentos, ficava confuso, se atrapalhava quando dirigia. Depois de alguns anos, ele teve uma convulsão que o deixou mais debilitado, as pernas foram enrijecendo, ele passou a se alimentar por sonda”, conta a filha do idoso, Marinês Terra Coelho, de 59 anos.

Com o agravamento do quadro, o idoso já não saía da cama e precisava de cuidado em tempo integral. “Ficamos muitos anos cuidando dele em casa, mas chegou um momento que a própria médica nos recomendou a buscar uma casa de repouso porque ele teria melhor suporte. A gente ia sempre visitá-lo. Minha mãe ia todos os dias, mas foi uma decisão muito difícil”, conta.

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Benedito ainda ficou sob os cuidados da clínica por cinco anos, mas a doença foi progredindo. “Ele tinha frequentemente infecções respiratórias por causa dessa fragilidade. A gente sempre levava para o hospital, faziam o tratamento, mas teve um momento que ele não aguentou mais e morreu por insuficiência respiratória”, diz.

Segundo os especialistas, o diagnóstico precoce das demências é importante justamente para que, com medicamentos e ações não farmacológicas, como atividades físicas, controle de doenças crônicas e reabilitação cognitiva, seja possível retardar ao máximo o avanço da doença.

Maioria dos óbitos ocorre entre idosos com 80 anos ou mais

Assim como no caso de Benedito, a ampla maioria das mortes por demências ocorre a partir dos 80 anos, faixa etária que costuma concentrar os casos avançados da doença. Em 2022, por exemplo, 77,5% das vítimas tinham oito décadas ou mais de vida. Outros 18,4% dos mortos tinham entre 70 e 79 anos, e somente 4,1% estavam abaixo dos 70 anos.

Na análise por gênero, as mulheres representam quase 65% dos óbitos. Estudos internacionais já mostraram que pessoas do sexo feminino têm maior propensão a desenvolver a doença. Além disso, as mulheres costumam viver mais, o que eleva a possibilidade de quadros demenciais.

Meire Galvão, da dupla As Galvão, perdeu a irmã por complicações do Alzheimer em agosto de 2022 Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Segundo os especialistas, a alta de mortes associadas ao Alzheimer e a outras demências é explicada, em partes, pelo aumento da expectativa de vida no País. Nas últimas décadas, com a melhoria das condições sanitárias e os avanços da Medicina, mortes precoces por causas como infecções e doenças cardiovasculares diminuíram, possibilitando que mais pessoas cheguem à terceira idade. Um maior conhecimento sobre a doença e o consequente aumento de notificações de casos e óbitos também elevam os registros.

Pandemia e pobreza tiveram impacto na alta de mortes

Mas somente o envelhecimento populacional e a melhoria dos sistemas de notificação não justificam alta tão expressiva, dizem neurologistas. Para eles, a pandemia e as vulnerabilidades socioeconômicas de grande parte da população idosa brasileira pioram o cenário.

“O isolamento que aconteceu durante a pandemia piorou o acesso à saúde e o acompanhamento de outras doenças. Os pacientes mais debilitados provavelmente tiveram uma piora nesse cenário”, diz Okamoto, do Einstein.

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A cantora Meire Galvão, de 83 anos, que integrou a dupla As Galvão por mais de 70 anos com a irmã, Marilene, afirma que os efeitos da pandemia foram debilitando a irmã, que morreu em agosto de 2022, aos 80 anos, por complicações do Alzheimer. Marilene havia recebido o diagnóstico dez anos antes.

“Até antes da pandemia, fazíamos shows. Ela se esquecia das letras, mas o Mario (Campanha, músico e marido de Meire) ajudava. Quando veio a pandemia, nós, artistas, tivemos que parar. E ela sentiu muito isso. Para ela, era bom cantar, se comunicar com as pessoas. Ela foi ficando triste, enfraquecendo”, diz Meire.

A cantora diz que, mesmo com acompanhamento médico e suporte de uma instituição especializada, a irmã foi perdendo a capacidade de desempenhar funções básicas. “Ela passou a ter dificuldade para comer, quase não falava mais. A gente consegue amenizar (os efeitos da doença), mas é uma situação que não tem retorno, e teve uma hora que ela não reagiu mais”, diz a sertaneja.

Meire, assim como a filha de Benedito, outra vítima do Alzheimer, destacam a quão fundamental é estruturar uma rede de cuidados para o paciente e de apoio para os cuidadores.

“Sempre explico a quem me pergunta as dificuldades que a família têm. Com a Marilene, todos sempre tiveram muito carinho. Eu tive muito apoio do nosso médico e do meu companheiro porque é uma situação pesada. E é preciso ter muita paciência e amor com o paciente. Às vezes eles não entendem, não se lembram, são teimosos ou podem ficar agressivos, mas a gente não pode ficar irritado. Eles não têm culpa”, diz.

Marinês, filha de Benedito, diz que os cuidadores não podem esquecer de si próprios. “Temos que dar tudo que pudermos, mas sem esquecer de olhar para nós, senão a gente adoece. E dividir as responsabilidades. No caso do meu pai, a minha mãe, os filhos e netos ajudavam”, diz.

Políticas de saúde para pacientes com demência ainda são insuficientes no País

Com o aumento de quadros demenciais no Brasil, dizem os especialistas, é importante que sejam implementadas políticas públicas que deem suporte a esses pacientes e familiares, principalmente para os casos em que a família não tem estrutura ou condições financeiras para arcar com cuidadores profissionais ou interromper a vida profissional para se dedicar exclusivamente ao cuidado do paciente.

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“Esses pacientes se tornam mais dependentes da família, e aí entra o fator econômico: quantos hoje no Brasil podem manter um cuidador? Sem um cuidado estruturado, consequentemente esse paciente tem menos tratamento, menos atividade física e menos estímulos cognitivos, o que faz a doença evoluir mais rápido”, diz Okamoto.

Para suprir esse déficit, a Associação Brasileira de Alzheimer defende a aprovação do projeto de lei federal 4.364/2020, que tramita no Congresso e institui a Política Nacional de Enfrentamento à Doença de Alzheimer e Outras Demências.

“Hoje, não há uma política adequada, o Brasil envelheceu muito e os direitos não são contemplados. O projeto prevê a criação de estratégias em todas as frentes: diagnóstico, combate ao estigma, instituições de longa permanência, tratamentos farmacológicos e não farmacológicos”, diz Schultz, presidente da ABRAz.

Ele afirma que a expectativa da associação e de outras entidades que apoiam o projeto é que ele seja aprovado e sancionado até o final do ano. O projeto, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), aguarda parecer do relator da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados.

O Ministério da Saúde foi questionado sobre os serviços existentes hoje no SUS para diagnóstico e assistência a pacientes com demências e sobre os planos da atual gestão para o atendimento a idosos, mas não respondeu.

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