Doentes e sem socorro: Violência policial piora a saúde nas favelas no Rio

Pesquisa inédita realizada com 1.500 pessoas de seis comunidades do Rio indica que os tiroteios durante as operações da polícia nos morros adoecem os moradores e os impedem de ter acesso aos serviços de saúde.

Como foi feita a pesquisa

Nem toda comunidade tem confronto. O CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) entrevistou e comparou as respostas dos moradores de seis comunidades: três bastante afetadas pelos tiroteios com a política e três que não enfrentam o mesmo problema, embora tenham o mesmo perfil socioeconômico.

As seis comunidades. Enquanto Nova Holanda (na Maré, zona norte), CHP-2 (em Manguinhos, zona norte), e Vidigal (zona sul) foram afetadas frequentemente por tiroteios da polícia, Parque Proletário dos Bancários (Ilha do Governador, zona norte), Parque Conquista (zona norte) e Jardim Moriçaba (zona oeste) tiveram poucos ou nenhum tiroteio com a polícia.

Mesmo com dados até 2022, o estudo considerou os tiroteios com participação policial contabilizados pelo Instituto Fogo Cruzado em 2019.

Utilizou-se 2019 para os registros de tiroteios porque é anterior à pandemia, que impactou o funcionamento dos serviços de saúde no Brasil.
Estudo "Saúde na Linha de Tiro: impactos da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro"

O STF proibiu operações na pandemia. Em junho de 2020, o ministro do STF Edson Fachin concedeu uma liminar que vetou as operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia de covid-19, sob pena responsabilização civil e criminal. No mesmo ano, a letalidade policial caiu 73% no estado.

O que a pesquisa indica

Problemas no coração. Moradores expostos à violência tiveram 42% mais chance de desenvolver hipertensão do que os moradores das favelas menos afetadas.

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Depressão. Cerca de 29,6% dos moradores das comunidades que registraram mais tiroteios relataram sintomas típicos de depressão, contra 15,7% entre os moradores das outras favelas.

Ansiedade. Quem mora nas regiões mais perigosas tem o dobro da chance de sofrer com ansiedade na comparação com os moradores das três comunidades com menor incidência de tiroteio.

Imagem da cartunista Laerte Coutinho cedida ao estudo: Profissionais de saúde deixam de trabalhar em dias de tiroteio e pacientes não saem de casa mesmo doentes
Imagem da cartunista Laerte Coutinho cedida ao estudo: Profissionais de saúde deixam de trabalhar em dias de tiroteio e pacientes não saem de casa mesmo doentes Imagem: Laerte Coutinho

Insônia. "A pesquisa estima que a probabilidade de ter insônia é 73% maior para pessoas que moram em comunidades expostas à violência armada", diz o estudo.

Esse tipo de violência também interfere na oferta dos serviços de saúde. Cerca de 60% dos moradores de comunidades com tiroteios relatam que a unidade de saúde do bairro foi fechada durante os confrontos — índice que cai para 13% nas favelas menos expostas.

Mais tempo com dor. Aproximadamene 26% dos moradores mais prejudicados precisaram adiar a procura por um serviço de saúde, contra 6% dos que moram em locais sem tiroteios. Outros 31,6% dizem que profissionais de saúde deixaram de trabalhar em razão do conflito armado — índice que não passa de 12% no outro grupo.

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A guerra às drogas impede que as pessoas tenham acesso a um direito básico e universal como a saúde. Compreender os impactos dessa violência é essencial para a formulação de políticas que possam transformar essa realidade.
Mariana Siracusa, coordenadora do estudo

O que diz a polícia

A Polícia Civil disse em nota que suas incursões nas comunidades são planejadas pela Agência Central de Inteligência, que faz o "mapeamento de local". "As ações da instituição sempre priorizam a preservação de vidas, tanto dos agentes quanto dos cidadãos", afirma a nota.

As organizações criminosas utilizam os recursos advindos das práticas delituosas para financiar seus domínios territoriais, com a restrição de liberdade dos moradores das regiões.
Polícia Civil, em nota

A PM também disse investir em "inteligência e planejamento prévio". Afirmou ter "preocupação central em preservação de vidas" e que o Instituto de Segurança Pública "registrou queda de 12,3% no número de mortes por intervenção de agentes do Estado" no primeiro semestre do ano na comparação com o mesmo período do ano passado.

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"Vale acrescentar que a opção inconsequente pelo confronto armado é sempre dos criminosos", diz a PM ao afirmar ter prendido 20.250 pessoas em 2023. A corporação citou a instalação de 9.524 câmeras portáteis para uso de policiais militares em serviço, "cobrindo integralmente o território estadual".

Postos de saúde fecham durante tiroteios com a polícia
Postos de saúde fecham durante tiroteios com a polícia Imagem: Laerte Coutinho

Negros e pobres

A pesquisa mostra ainda que negros e mulheres são os principais afetados pelos tiroteios entre a polícia e o crime organizado.

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A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas são os moradores de comunidades, pobres e negros, que mais adoecem com essa escolha política do Estado.
Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e ex-ouvidora da polícia

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Maioria nas comunidades, mulheres, negros e quem ganha menos de um salário mínimo são os mais afetados pelos conflitos
Maioria nas comunidades, mulheres, negros e quem ganha menos de um salário mínimo são os mais afetados pelos conflitos Imagem: Laerte Coutinho

"Não me sinto seguro nem em casa"

Ansiedade aumentou. Há 29 anos morador de Nova Holanda, o produtor cultural Carlos Marra, 34, conta que seus níveis de ansiedade aumentaram a partir de 2017, "quando as operações ficaram mais frequentes".

"As operações estão mais e mais truculentas", diz. "Como aqui elas vêm acontecendo às quartas, eu já fico tenso quando vai chegando o dia. Quando a operação começa, você não se sente seguro em lugar nenhum, nem na sua casa".

Ele confirma que os postos de saúde deixam de funcionar. "Temos um posto que fecha toda vez que tem tiroteiro. Minha mãe, que faz tratamento para a pressão, tem de mudar as consultas toda vez que chega a polícia."

Toda a rotina aqui dentro muda. As pessoas não saem de casa para ir ao médico, à escola, ao trabalho. As lojas não abrem e a gente fica acuado. Nossa região não é violenta. A favela é que é violentada pelo Estado.
Carlos Marra, produtor cultural

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