Veículos novos ainda emitem poluentes danosos à saúde, apesar da redução geral em São Paulo

Legislação da última década sobre emissões veiculares ajudou a reduzir danos atmosféricos na região metropolitana, mas biocombustíveis criam preocupações ainda não monitoradas pelos órgãos ambientais

 16/08/2023 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 21/08/2023 as 13:17

Texto: Ivan Conterno*
Arte: Carolina Borin**

As emissões dos veículos na região de São Paulo tinham menos poluentes do que em outros países, mas a concentração de substâncias cancerígenas em períodos poluídos é maior do que o limite recomendado pelas agências europeias - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP caracterizou as substâncias presentes nas emissões veiculares na Região Metropolitana de São Paulo. Os dados foram coletados em 2018 e os resultados indicam que as emissões foram menores do que há duas décadas, o que mostra a eficácia das exigências de dispositivos para controle de emissão de poluentes, em 2012, para os veículos pesados e em 2013, para os leves. No entanto, o uso de biocombustíveis pode estar relacionado a emissões de espécies químicas indesejadas.

O artigo Emission factors for a biofuel impacted fleet in South America’s largest metropolitan area, publicado na edição de agosto da revista Environmental Pollution, analisou os fatores de emissão de diversas espécies químicas em veículos leves e pesados que estão gradativamente usando mais biocombustíveis, como etanol e biodiesel.

A emissão de gases como óxidos de nitrogênio e monóxido de carbono apresentou uma tendência de queda entre 2001 e 2018. Além disso, houve uma redução na emissão de partículas suspensas no ar pelos veículos. As exigências para redução de emissão de poluentes pelos veículos fazem parte do Programa de Controle de Emissão de Poluentes por Veículos Automotores (Proconve), estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Guilherme Martins Pereira - Foto: Arquivo Pessoal

Guilherme Martins Pereira - Foto: Arquivo Pessoal

As medições para avaliar emissões veiculares foram realizadas em túneis na cidade de São Paulo. Outros estudos similares foram feitos em 2001, 2004 e 2011 por pesquisadores do Laboratório de Análise dos Processos Atmosféricos, com colaboradores do Grupo de Estudos em Química Atmosférica e do Laboratório de Física Atmosférica, todos da USP. Com isso, foi possível acompanhar a evolução das emissões veiculares que incorporaram novas tecnologias e novos padrões de emissão da frota. O principal destaque dos últimos anos é a gradativa introdução do biodiesel e de motores flex, que podem usar tanto gasolina quanto etanol, nos veículos de passeio desde 2003.

O foco da pesquisa foram as emissões dos veículos, que são responsáveis pela maior parte dos poluentes emitidos para a atmosfera de São Paulo. O estudo, porém, não tem como objetivo avaliar o ar que é respirado pela população, que depende da quantidade de veículos circulantes e das condições meteorológicas. Esse tipo de avaliação é feito anualmente pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Entretanto, os cientistas da USP identificam compostos que afetam a saúde humana que ainda não são regulamentados e não aparecem em outros tipos de levantamento.

Os pesquisadores observaram que veículos leves apresentaram maiores emissões de elementos como ferro, cobre, alumínio e bário. Isso pode estar relacionado ao maior uso de etanol em 2018 se comparado ao calculado desde 2001. “O cobre pode estar presente no etanol e esse combustível também pode acelerar a corrosão de partes do veículo, o que libera esses metais na atmosfera”, conta o pesquisador Guilherme Martins Pereira ao Jornal da USP. Esses metais não necessariamente apresentam toxicidade na atmosfera, mas saber que eles têm relação com o uso de etanol os torna úteis para identificar o impacto desse combustível na qualidade do ar. São considerados veículos leves desde ciclomotores até caminhonetes, englobando uma grande variedade de veículos de passeio. Todos usam o etanol hidratado, a gasolina ou o gás natural veicular como combustível.

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Pérola de Castro Vasconcellos - Foto: Arquivo Pessoal

Os veículos pesados, como ônibus, caminhões e tratores, usam o diesel combinado ao biodiesel. Esses automóveis se destacaram por emissões de arsênio, cádmio, chumbo e zinco, embora não sejam os poluentes majoritários dessa fumaça. “O chumbo, presente nas emissões de veículos pesados, é associado com efeitos tóxicos carcinogênicos e não carcinogênicos”, ressalta Guilherme Pereira.

Os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) são espécies químicas formadas na combustão incompleta de matéria orgânica, inclusive dos combustíveis fósseis, muito estudadas devido aos seu potencial de causar câncer. No estudo, os veículos leves emitiram uma proporção mais elevada de HPAs de massa molecular mais elevada (com cinco ou mais anéis aromáticos). Embora os veículos pesados apresentem uma emissão total maior de HPAs, essa produção pelos veículos leves tem maior potencial cancerígeno. Outros estudos apontam que a gasolina ainda é uma fonte maior de HPAs de massa molecular mais elevada e o uso do etanol pode ajudar a reduzir essas emissões. “As emissões foram mais baixas em relação a outros países. Isso pode ter sido um efeito do uso do etanol”, enfatiza Guilherme. No entanto, a concentração medida de uma dessas substâncias, o benzo(a)pireno, ainda é maior do que o recomendado pela Agência Europeia do Ambiente, em períodos poluídos na cidade de São Paulo.

A concentração de benzo(a)pireno se dá com maior intensidade em períodos poluídos na capital paulista - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A emissão dos HPAs ainda não é regulamentada por lei, embora eles sejam extremamente danosos à saúde. Os veículos pesados emitiram uma proporção maior de HPAs oxidados, em comparação com os veículos leves, o que pode estar associado ao uso do biodiesel, sendo que existe uma classe de HPAs oxidados com potencial cancerígeno possivelmente maior, se comparado aos anteriores. Isso ocorre porque as misturas de biodiesel podem levar a uma emissão de óxidos de nitrogênio. Dentro do motor, a presença desses gases contribui para a conversão dos HPAs produzidos na combustão para os HPAs nitrados e oxidados.

Black carbon são partículas de fuligem suspensas no ar formadas majoritariamente por carbono, liberadas após a queima de combustível. As políticas para redução de emissões em veículos foram eficazes ao longo dos anos estudados, apesar dos valores ligeiramente maiores para partículas menores do que 2,5 micrômetros, mais nocivos para a saúde - Gráfico: Jornal da USP

O cálculo de fatores de emissão dos veículos leves foi feito no Túnel Presidente Jânio Quadros, que liga o bairro Itaim Bibi ao Morumbi e onde só circulam automóveis de até 3,5 metros. A concentração da poluição fora do túnel é subtraída da que é medida dentro dele. A equação também leva em conta a diferença de concentração do monóxido de carbono (CO), do gás carbônico (CO2) e a quantidade de carbono no combustível.

Para a emissão dos veículos pesados, foi descontada a influência dos leves presentes no túnel 1 do Rodoanel, por onde passam todos os tipos de automóveis. Para obter uma melhor estimativa, também foi calculada a proporção de veículos pesados e leves que circulavam nessa via.

Testes in loco

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase toda a população mundial (99%) respira ar com poluentes acima do recomendado. “Se uma população estiver ao lado de uma indústria e de uma via movimentada, é muito importante saber qual das duas é a principal causadora de impacto e qual será o tipo de ação a ser adotada pelos tomadores de decisão”, exemplifica o pesquisador Leonardo Yoshiaki Kamigauti ao Jornal da USP.

A série de estudos dos pesquisadores USP, feita na maior área metropolitana da América do Sul, contribui para a construção de políticas públicas mais eficazes e sustentáveis no combate à poluição atmosférica. Segundo a professora Pérola de Castro Vasconcellos, do Instituto de Química (IQ) da USP, os túneis urbanos e rodoviários onde foram realizados os experimentos funcionam como laboratórios. “Neles há somente a influência de veículos. A coleta de amostras fora do túnel tem outras fontes de emissão, como indústria e queimadas. Quando a medição é feita fora, tem a radiação solar, que pode causar reações fotoquímicas e mudar a concentração de poluentes.”

Leonardo Yoshiaki Kamigauti - Foto: Arquivo pessoal

Leonardo Yoshiaki Kamigauti - Foto: Arquivo Pessoal

Maria de Fátima Andrade - Foto: Arquivo pessoal

Maria de Fátima Andrade - Foto: Arquivo pessoal

A professora Maria de Fátima Andrade, do IAG, explica ao Jornal da USP que a equipe não usou equipamentos para medir as emissões de poluentes pelo escapamento de cada veículo individualmente, que são extremamente grandes e caros. Testes como esses são feitos pelos fabricantes e pelas agências ambientais para determinar a poluição gerada individualmente e em condições de laboratório. Os dados colhidos nesse estudo são mais fiéis à realidade e representam a frota média real, com diferentes modelos de veículos, diferentes idades e até eventuais adulterações no combustível e nos veículos em si. “Como a medição cobre uma semana, medindo em todos os horários, o túnel amplia a estatística ao invés de individualizá-la.”

Para avançar no conhecimento sobre as emissões veiculares e as contribuições de diferentes fontes, os estudos futuros devem focar nas emissões de partículas por motocicletas e na diferenciação das fontes de poluição pelo desgaste com o asfalto. “Além da questão da matriz energética, que é sempre muito complexa, os metais saem da abrasão dos freios e dos pneus para a atmosfera mesmo em veículos elétricos”, conta Fátima Andrade ao Jornal da USP.

Os veículos pesados são responsáveis pela maior parte dos poluentes totais estudados, apesar de estarem em menor número - Gráfico: Jornal da USP

Biocombustíveis

O Brasil é o segundo maior país produtor de biodiesel e de etanol. Na gasolina brasileira, a mistura chega a 27% de etanol. Em outros países, essa parcela é de no máximo 15%. “O Brasil serve como um laboratório para outros países poderem avaliar qual é a diferença na toxicidade em termos de composição das emissões e decidirem sobre o próprio uso de biocombustíveis, questão fundamental para a transição energética para energia limpa”, explica Leonardo. No Brasil, o etanol é produzido principalmente a partir da cana-de-açúcar e é adotado como substituto da gasolina desde 1975, quando foi criado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). O biodiesel brasileiro é produzido a partir da soja. 

O primeiro carro do mercado brasileiro com motor flex, que permite o uso combinado da gasolina e do etanol em qualquer proporção, foi lançado em 2003. Após 20 anos, esses motores estão presentes em cerca de 90% dos veículos leves que circulam no País, de acordo com o anuário da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Dessa maneira, os preços determinam em grande parte com qual combustível os carros são abastecidos. No mercado, é possível encontrar misturas de gasolina e etanol (com 27% de etanol), etanol e água (5% de água) e misturas de biodiesel (a 9%).

Venda de etanol, gasolina (com 27% de etanol) e diesel na Região Metropolitana de São Paulo (em gigalitros) ao longo dos anos - Imagem: Environmental Pollution

Mais informações: e-mails maria.andrade@iag.usp.br, com Maria de Fátima Andrade; leonardo.kamigauti@usp.br, com Leonardo Yoshiaki Kamigauti; guilherme.martins.pereira@usp.br, com Guilherme Martins Pereira; perola@iq.usp.br, com Pérola de Castro Vasconcellos, mgavidia@model.iag.usp.br, com Mario Eduardo Gavidia-Calderón, edmilson.freitas@iag.usp.br, com Edmilson Dias Freitas, e thiagonogueira@usp.br, com Thiago Nogueira.

*Estagiário sob orientação de Fabiana Mariz e Valéria Dias

**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado


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