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Superfungos: desafio emergente na saúde global

Ameaça representada pelos superfungos destaca a necessidade urgente de ações abrangentes

10/07/2023

Resistência antifúngica representa uma ameaça silenciosa, mas devastadora, que pode comprometer o tratamento de várias doenças fúngicas e aumentar a morbidade e a mortalidade em todo o mundo

Os fungos desempenham papéis essenciais em ecossistemas naturais; no entanto, um novo e preocupante fenômeno tem chamado a atenção da comunidade científica e da saúde pública em todo o mundo: os ‘superfungos’. Esses organismos resistentes a múltiplos medicamentos representam um desafio emergente que coloca em risco a eficácia dos tratamentos antifúngicos e a saúde humana. Entre os superfungos mais preocupantes está Candida auris, uma espécie que tem se espalhado rapidamente. Outros fungos como Aspergillus fumigatus e Cryptococcus neoformans, também têm mostrado resistência crescente aos tratamentos antifúngicos disponíveis.

O microbiologista e chefe do Laboratório de Micologia do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), Dr. Rodrigo de Almeida Paes, explica que Candida auris é um patógeno emergente que demonstra resistência aos antifúngicos comumente utilizados na prática clínica, resultando em significativa morbimortalidade. “Esse patógeno tem sido amplamente conhecido como ‘superfungo’ devido à sua alta capacidade de transmissão, resistência a múltiplos antifúngicos, longa sobrevivência em ambientes hospitalares e desfechos clínicos graves”, acrescenta ao ressaltar que essa espécie não é a única com essas características, existindo outros fungos, tanto leveduriformes quanto filamentosos, com potencial para causar quadros clínicos semelhantes àqueles causados por C. auris.

Uma das principais preocupações é a crescente incidência de infecções fúngicas resistentes em hospitais e unidades de terapia intensiva (UTI). Pacientes imunossuprimidos ou imunocomprometidos, como os que passaram por transplantes de órgãos, tratamentos de câncer ou com sistemas imunológicos debilitados, os idosos e os recém-nascidos estão particularmente vulneráveis a infecções fúngicas invasivas causadas por esses microorganismos. Além disso, esses fungos podem sobreviver em superfícies e objetos por longos períodos, o que torna o controle da propagação ainda mais desafiador. Os superfungos podem causar desde infecções de pele e unhas até infecções mais graves, como a candidemia, uma infecção fúngica generalizada que pode ser fatal. Existem alguns estudos sobre as razões da multirresistência de C. auris e de outros fungos, porém ainda há muito a ser descoberto.

“Uma pesquisa conduzida em 2021 na Bélgica e nos Estados Unidos revelou, por meio do sequenciamento genômico de C. auris, que essa espécie adquire rapidamente alterações genéticas que garantem sua resistência aos antifúngicos. Esse processo envolve o acúmulo gradual de novas mutações e variações no número de cópias de genes conhecidos e desconhecidos, relacionados à resistência a medicamentos antifúngicos”, detalha o Dr. Paes ao complementar que a resistência às equinocandinas está associada à deleção de aminoácidos em uma proteína que influencia a síntese da parede celular do fungo. Já a resistência aos azólicos está relacionada à superexpressão de bombas de efluxo, que transportam o antifúngico para fora da célula fúngica.

Ainda de acordo com o microbiologista, essa superexpressão ocorre devido a duplicações em certas regiões cromossômicas que abrigam os genes dessas bombas. “Além disso, foram observadas diversas mutações que modificam drasticamente enzimas envolvidas na síntese de ergosterol, o que está associado à resistência tanto à anfotericina B quanto ao fluconazol”, assinala. Outra característica que aumenta a resistência aos fármacos antifúngicos em C. auris e em diversos outros fungos é a sua capacidade de formar biofilmes em diferentes superfícies.

Assim como ocorre com as bactérias resistentes a antibióticos, o uso inadequado de antifúngicos pode selecionar cepas de fungos resistentes, tornando os tratamentos convencionais ineficazes. A ameaça representada pelos superfungos destaca a necessidade urgente de adoção de ações abrangentes. É essencial investir em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos antifúngicos, bem como promover uma melhor gestão dos antifúngicos já existentes, evitar o uso indiscriminado e incentivar práticas adequadas de prescrição. Além disso, a conscientização pública sobre os riscos e a prevenção de infecções fúngicas deve ser ampliada. A higiene adequada das mãos, a esterilização de instrumentos médicos, a limpeza de ambientes hospitalares e a adoção de práticas de controle de infecção são fundamentais para minimizar a disseminação dos superfungos.

Brasil registra casos do superfungo

Em dezembro de 2020, o Brasil registrou o primeiro caso de infecção por Candida auris, em Salvador (BA). “A Candida auris já foi isolada de diversos países, com diferentes condições climáticas e sociais, portanto a região Nordeste não deve ser a única a reportar casos deste fungo no Brasil. Recentemente foi diagnosticado um caso de infecção por C. auris na região Sudeste, no estado de São Paulo. O que pode estar acontecendo em outros locais são falhas de identificação, uma vez que esta espécie é de difícil diagnóstico. É totalmente possível que esta espécie ainda vá ser diagnosticada em outros locais do Brasil”, destaca o microbiologista. De acordo com um trabalho da Fiocruz, o maior surto de C. auris ocorreu em Recife, entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022, totalizando 48 casos, número mais alto desde que a  presença deste fungo foi confirmada pela primeira vez no País, em 2020.

Nos Estados Unidos, o C. auris foi identificado pela primeira vez em um hospital de Nova York, em 2016. Desde então, o número de casos tem crescido de forma dramática, o que levou o Centro de Controle e Prevenção de Doença (CDC) a emitir um alerta sobre como a C. auris se espalhou em uma “taxa alarmante” durante a pandemia. Ao longo de 2021, foram confirmados 1.474 casos clínicos, um aumento de cerca de 200% em relação aos quase 500 casos em 2019. O fungo foi relatado pela primeira vez no Japão em 2009, em um caso de otomicose. Desde então, foi identificado em todos os continentes, com exceção da Antártica. A origem exata do microrganismo, porém, ainda é pouco conhecida.  A teoria mais fundamentada atribui o surgimento e a disseminação pelo planeta às mudanças climáticas e ao aquecimento global.

O desafio representado pelos superfungos é uma questão global que requer colaboração entre governos, instituições de pesquisa, profissionais de saúde e indústria farmacêutica. A resistência antifúngica representa uma ameaça silenciosa, mas devastadora, que pode comprometer o tratamento de várias doenças fúngicas e aumentar a morbidade e a mortalidade em todo o mundo. O combate aos superfungos exige esforços conjuntos para garantir terapias eficazes e estratégias de prevenção sólidas. Somente com uma abordagem abrangente e a conscientização generalizada sobre o problema é possível enfrentar essa crescente ameaça à saúde global.

Não existem sintomas específicos nos casos de infecção por C. auris ou outros fungos multirresistentes emergentes. Entretanto, segundo o Dr. Paes, há fatores de risco que estão associados a uma maior chance de desenvolver infecção por esta espécie. Tais fatores incluem idade avançada, diabetes mellitus, cirurgia recente, presença de dispositivo médico permanente (por exemplo, cateter venoso central), imunossupressão, uso de hemodiálise, neutropenia, doença renal crônica ou uso de antibiótico de amplo espectro e /ou antifúngicos.

Surto de Candida vulturna causado por cepas multirresistentes na China

Embora considerada uma espécie rara, Candida vulturna, um fungo oportunista filogeneticamente relacionado a C. haemulonii e C. auris, também merece atenção por ser considerada uma levedura multirresistente, principalmente à anfotericina B. Esta espécie foi inicialmente isolada de flores e mais tarde foi descrita como causadora de candidíase invasiva em humanos.

Um estudo analisou 19 pacientes, 17 homens e 2 mulheres, que foram infectados com C. vulturna entre 1° de janeiro de 2019 e 26 de outubro de 2022. Foram isoladas 16 cepas de C. vulturna de hemoculturas sangue e 7 cepas de cateteres centrais de inserção periférica (PICCs) dos 19 pacientes. Inicialmente, as cepas foram identificadas como espécies do complexo C. haemulonii por crescimento em CHROMagar Candida e confirmado por análise molecular. Medidas de higiene tomadas naquela época podem ter atenuado a propagação de _C. vulturna_ no hospital. Com base nas análises filogenéticas dos isolados, todas as cepas foram intimamente relacionadas e agrupadas em 1 clado.

Leia o relato de caso Candida vulturna Outbreak Caused by Cluster of Multidrug-Resistant Strains, China aqui 

Ações recomendadas para evitar ocorrência de casos

– Identificação adequada, a nível de espécie, de todas as leveduras isoladas de pacientes com alto risco de infecção;

– Isolar pacientes infectados ou colonizados por C. auris;

– Garantir o uso de equipamentos de proteção individual e higiene das mãos durante o atendimento ao paciente;

– Informar o pessoal médico e de enfermagem da unidade organizacional afetada sobre C. auris e os riscos associados;

– Alterar procedimentos de desinfecção. Para garantir a inativação segura de C. auris, deve-se usar desinfetante à base de ácido peracético em vez de compostos de amônio quaternário com ou sem álcool;

– Iniciar a terapia antifúngica somente se C. auris estiver relacionado a uma infecção clinicamente relevante;

– Rastrear contatos próximos do caso índice para colonização de C. auris;

– Realizar vigilância de longo prazo para a presença de C. auris em unidades organizacionais com transmissão documentada.

Orientações para identificação, prevenção e controle de infecções de C. auris

De acordo com a NOTA TÉCNICA GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 02/2022 – Orientações para identificação, prevenção e controle de infecções por Candida auris em serviços de saúde, atualizada em 15/09/2022, é recomendado seguir os seguintes procedimentos para diagnóstico e identificação dos fungos multirresistentes: (i) realizar exames microbiológicos para obtenção de colônias puras, preferencialmente em meio cromogênico, e incubar por mais de 2 dias a uma temperatura de 35-37ºC; (ii) observar a cor das colônias no ágar cromogênico. As colônias de C. auris podem apresentar coloração creme inespecífica, rosa ou lilás; (iii) realizar microscopia com tinta nanquim (tinta da China) para descartar a presença de leveduras capsuladas, característica do gênero Cryptococcus; (iv) realizar provas de triagem para identificação presuntiva de C. auris; (v) após a identificação presuntiva, realizar a identificação proteômica por MALDI-TOF ou o sequenciamento genético da região D1-D2 ou ITS. Caso o laboratório não possua os equipamentos adequados para as análises proteômicas e genômicas, é fundamental encaminhar os isolados para laboratórios de referência, a fim de confirmar o caso e acionar uma força-tarefa nacional específica para apoiar as ações de vigilância e controle do surto o mais breve possível.

**Esta reportagem reflete exclusivamente a opinião do entrevistado.**