O PL dos Planos de Saúde e os impasses da medicina privada

• PL dos Planos de Saúde avança • As resistências que o PL enfrentará • Direito do usuário é “inconsistência”? • Verticalização da saúde suplementar • Farmacêuticas e planos em pé de guerra •

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Avançou esta semana, no Congresso, o Projeto de Lei 7419/2006, que visa dirimir décadas de conflitos na saúde privada do país. Sob relatoria do deputado Duarte Junior (PSB-MA), o PL tem a ambição de condensar outras 270 propostas. Já é um sinal da complexidade do mercado de saúde e sua relação com usuários e prestadores de serviços.

Os reajustes abusivos e cancelamentos unilaterais em massa, marcas do período recente da relação entre seguros e usuários, foram os grandes destaques na mídia. Mas, tal como na reforma tributária, que já atravessa gerações, trata-se de tema que faz colidir diversos interesses, nuances e condições dos atores envolvidos. A própria relação das empresas com os profissionais de saúde, governos e SUS são parte dessa trama imbricada.

As boas intenções e os limites do negócio

No plano imediato, o PL tem o mérito de tentar diminuir a judicialização entre planos privados e seus usuários. Como tem mostrado Outra Saúde, esta é uma tendência que cresce no setor. Isso porque os lucros que a saúde-negócio ambiciona parecem não acompanhar a demanda crescente de serviços pelos usuários. O embate em torno do rol taxativo da ANS foi uma demonstração eloquente deste conflito. No final das contas o Congresso decidiu: os usuários têm direito a tratamentos de saúde que a lista oficial excluía.

cancelamento unilateral dos contratos, pelas empresas, foi outro tema sensível ao projeto de lei. Os planos tentam diluir por meio deste mecanismo seus maus resultados econômicos. Parecem ter sistematizado uma estratégia de negar, aos usuários, tratamentos caros, como terapias para autismo ou câncer.

“O plano faz isso (rescisão unilateral) com idosos, pessoas com deficiência ou fazendo quimioterapia. É algo desproporcional. O que pretendemos inserir é que não pode haver rescisão unilateral do contrato. Só vai poder rescindir se o consumidor estiver devendo. Se ele atrasou 60 dias consecutivos, notifica e tira o consumidor (do plano). Se ele paga em dia e atrasa menos de 60 dias, não cabe rescisão unilateral. O consumidor paga o plano durante toda sua vida, paga para não usar, mas quando ele precisa, (o plano) precisa funcionar”, afirmou Duarte Junior.

Seriam os direitos dos usuários meras “inconsistências”?

A criação de um fundo para doenças raras é outra demonstração de boa vontade do PL. No entanto, no site Jota Info, Ligia Formenti parece desprezar este avanço. Segundo sua análise, o PL está recheado de “inconsistências” que no final manterão a “insegurança jurídica” vigente na relação dos planos privados com seus usuários.

“O relator propõe regras para reajuste de contratos coletivos, mais garantias para que clientes tenham acesso a medicamentos prescritos por médicos, torna explícita a impossibilidade de rescisão unilateral de contratos e cria um fundo para financiar doenças raras. Não houve surpresa nas linhas gerais: um texto nitidamente preparado para agradar consumidores. O que chama a atenção, no entanto, é que o relator não explicita a forma como isso deve ocorrer”, diz a jornalista. É como se coubesse aos parlamentares administrar as empresas da medicina privada, ao invés de defender os direitos da população.

Enquanto isso, entidades patronais seguem seu esforço em não acatar o Piso Nacional da Enfermagem, sancionado no governo Bolsonaro e reafirmado pelo novo governo, que em agosto deu início à sua concretização para a categoria da enfermagem do SUS. O tema não entra no escopo do PL 7419/2006, mas pode ser pedagógico para se compreender por quais motivos o Brasil nunca conseguiu estabelecer uma regulação satisfatória deste mercado. Já no Rio Grande do Norte, a Justiça decidiu que planos não são obrigados a oferecer consultas pedidas por nutricionistas, em mais uma demonstração de como as demandas em saúde podem se complexificar — e aqueles que se movem pelo lucro nem sempre irão satisfazer todas as necessidades de seus clientes.

A ilusão da “saúde suplementar” e o mar de tubarões

Para fechar este breve tópico, o Brasil voltou a registrar leve aumento da adesão a seguros de saúde, o que se relaciona com a retomada do emprego formal, pois muitas empresas incluem acesso à saúde suplementar entre seus “benefícios”, o que tende a aumentar a demanda por serviços neste ramo.

Para além da relação planos e usuários, há questões internas ao próprio mercado da saúde e seus atores. Como se vê, há uma forte concentração de capital no setor, caracterizada por um movimento inédito de verticalização — isto é, grandes grupos econômicos se apropriando de partes distintas da cadeia produtiva, a exemplo de grupos donos de hospitais que adquirem seguradoras da saúde, assunto que passou pelo crivo do CADE recentemente. Aqui também temos uma tendência de concentração de oferta de serviço, com prejuízos já relatados a usuários que sofrem com interrupção ou mudanças bruscas de tratamentos importantes.

Neste sentido, há o efeito de empresas menores de seguros se tornarem incapazes de cumprir o que prometem a seus contratantes. Estes, por sua vez poderiam se deparar com aumento de seus gastos com saúde ou se contentar com a rede pública, subfinanciada há décadas. O que implica mais demanda – e necessidade de investimento – sobre o SUS.

Briga de cachorros grandes e o debate sobre o que fazer

Outro pequeno conflito entre setores poderosos se deu entre farmacêuticas e planos privados, cada qual a buscar seu interesse. Isso porque nota técnica da ANS restringe acesso a medicamentos de terapias avançadas e os coloca em categoria distinta de fármacos em geral. Significa que os primeiros, mais caros, só poderiam ser ofertados por planos de saúde se incluídos no rol da ANS e liberados pelo Conitec, decisão contestada pelo setor farmacêutico. Este, para garantir maiores possibilidades de comercialização, lança mão do nobre argumento de que a medida restringe seu acesso pelos usuários e aumentará a pressão sobre o SUS.

Como se vê, basta um apanhado de fatos sucedidos num breve espaço de tempo para se deparar com o tamanho do desafio de se regular o negócio da saúde e os interesses que se chocam e entrelaçam simultaneamente, com repercussões no setor público incluídas. No fim das contas, a regulação é possível?

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