Por que o mercado quer o sangue dos brasileiros

Há dois objetivos por trás da privatização do plasma, em debate hoje no Senado. Abrir caminho para comercialização de órgãos humanos. E frustrar os planos de uma empresa nacional – a Hemobrás – para atender plenamente às necessidades do SUS

Créditos: Rodrigo Nunes/Ministério da Saúde
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ATUALIZAÇÃO
4/10 às 16h: A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou a PEC 10/2022 por 15 votos a 11.

Esta quarta-feira, 4/10, pode tornar-se um dia crucial nas lutas pela Saúde pública. Movimentos e entidades posicionam-se contra a Proposta de Emenda Constitucional 10/2022, conhecida como PEC do Plasma, que pretende retirar a exclusividade do poder público de recolher e utilizar plasma humano – a parte líquida do sangue, que corresponde a 55% de seu volume – para pesquisa e produção de fármacos. O tema é debatido na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. 

A PEC foi apresentada pelo Senador Nelsinho Trad (PSD/MS) e modificada pela atual relatora, Daniella Ribeiro (PSD/PB). Caso aprovada, permitirá que empresas remunerem brasileiros pela coleta de seu plasma, além de fazer estudos e desenvolver medicamentos a partir dele. É o que explicou detalhadamente Ana Paula Soter, assessora parlamentar do senador Humberto Costa (PT/PE), em sua participação ao Cebes Debate de 11/9.

Há muito em risco. Movimentos como a Frente pela Vida vêm levantando importantes argumentos contra a aprovação da PEC. Talvez o mais essencial diga respeito ao bem comum dos brasileiros. A Constituição de 1988 garantiu que nenhum órgão, tecido ou substância humana pode ser comercializado ou explorado pela iniciativa privada. A doação de sangue e órgãos, algo que é feito em nome da solidariedade, pode ser transformada em transação comercial que vai beneficiar, de fato, empresários de farmacêuticas internacionais. 

“O setor privado quer pegar nosso plasma como se fosse matéria-prima e produzir para o mercado internacional, sem nenhuma garantia de retorno ao SUS”, criticou Ana Soter em entrevista ao Outra Saúde. “É o mesmo lugar neocolonial em que parte da elite brasileira quer nos manter. Um lugar onde o direito ao bem-estar e à vida é um privilégio de quem pode pagar por eles”, escreveu a deputada Ana Pimentel (PT/MG), também contrária à PEC 10/22. Carlos Fidelis, presidente do Cebes e pesquisador da Fiocruz, tem opinião semelhante: “Trata-se de uma alteração que possibilita a comercialização de plasma sanguíneo humano, abrindo mercado para grandes grupos empresariais transformarem o sangue dos brasileiros em mais uma commodity”.

Mas há outro argumento, muito concreto, para repudiar a aprovação da PEC do Plasma: a Hemobrás, empresa brasileira de hemoderivados e biotecnologia, está prestes a concluir a transferência tecnológica que a capacita para a produção de fármacos em território nacional. Quando estiver em pleno funcionamento, a Hemobrás poderá processar 500 mil litros de plasma por ano – o suficiente para atender a demanda do SUS, confirmou Ana Soter.

A fábrica de biotecnologia estará concluída até dezembro, e as instalações para a produção de hemoderivados serão entregues até o final de 2024. Por enquanto, a etapa de fracionamento do plasma é feita em parceria com o Laboratório Francês de Fracionamento e Biotecnologia – LFB. A fábrica da Hemobrás fica na cidade de Goiana, em Pernambuco, próximo à fronteira com a Paraíba.

A PEC do Plasma foi formulada no governo Bolsonaro, que se esforçava para acabar com o patrimônio brasileiro. Agora, a visão é outra, assegura Nísia Trindade, ministra da Saúde. Em entrevista à Jota, ela afirmou: Estamos em um outro momento. Um momento em que o governo vai acolher a ideia inicial da Hemobrás, que é garantir a autossuficiência”. O Novo PAC destina um investimento de R$ 100 milhões à farmacêutica brasileira. É curioso que uma PEC que beneficia as farmacêuticas estrangeiras seja sugerida em momento tão próximo ao alcance de autonomia brasileira no setor…

A possibilidade, aberta pela PEC do Plasma, de que pessoas possam oferecer seu sangue em troca de dinheiro ou benefícios, tem ainda outra consequência perigosa. A doação de sangue para os bancos do SUS corre o risco de ser reduzida drasticamente. Em 2022, quase 3,2 milhões de brasileiros fizeram doação – ou cerca de 1,4% da população. Que acontecerá se parte dessas pessoas passarem a doar ao setor privado? 

Mas a saúde privada faz pressão para a mudança na constituição que permitirá explorar o sangue dos brasileiros. Desde segunda-feira (2/10), a Associação Brasileira de Banco de Sangue está disseminando anúncios agressivos nos principais jornais – inclusive em formato de sobrecapa. A propaganda ataca frontalmente a Hemobrás, afirmando que “o Brasil não tem tecnologia para processar o plasma”, e que as doações, hoje, estariam desperdiçando o tecido.

“É falsa e contém conotações maldosas a declaração de que o plasma obtido por doações é desprezado, havendo assim desperdício. O plasma excedente do uso transfusional coletado nos serviços de hemoterapia públicos, atualmente é fracionado por empresa contratada em parceria estratégica, sendo essa empresa a Octapharma A.G., uma das maiores indústrias do segmento de hemoderivados no mundo”, afirmou a Hemobrás, em nota. O risco de desperdício, aliás, é muito maior no setor privado, afirma outra nota da empresa.

“O mercado de hemoderivados no Brasil movimenta cerca de 10 bilhões de reais por ano, segundo dados publicados pela Revista Exame, a partir de informações das farmacêuticas. Isto explica a insistência em setores do Congresso Nacional em aprovar a PEC 10/2022”, escreveu recentemente Túlio Franco, da Frente pela Vida, para o Outra Saúde.

Há ainda outro risco importante, que diz respeito à dignidade da população. Antes de haver essa a interdição constitucional ao pagamento por coleta de sangue, pessoas mais vulneráveis vendiam seu sangue a troco de quase nada. E as farmacêuticas que faziam sua coleta e não eram capazes de processá-lo com segurança. Essa má gestão do sangue acarretou em casos como o do cartunista Henfil e seus dois irmãos, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o músico Francisco Mário Figueiredo de Souza, conhecido como Chico Mário. Os três se contaminaram com o HIV por meio de transfusões de sangue. 

Rosana Onocko, psicanalista e presidente da Abrasco, chamou a atenção para esse perigo em artigo publicado na Folha. E questionou: “O Brasil procura se recuperar a duras penas das feridas que uma pandemia administrada com crueldade e incompetência lhe deixaram. […] Apesar do descalabro, o SUS emergiu da pandemia com maior legitimidade do que nunca. Quais são as forças que querem fazê-lo retroceder?”

Nesta manhã em que o debate na CCJ se inicia, movimentos sociais e representantes da Frente pela Vida e do Conselho Nacional de Saúde (CNS) encontravam-se presentes no Senado. Buscam fazer pressão para que a PEC do Plasma não seja aprovada.

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