Paulo Amarante contra a saúde mental neoliberal

Noções individualistas e medicalizantes dominam discussão sobre bem-estar. Psiquiatria propõe: em política de saúde mental, ousadia e criatividade – com foco na comunidade e no território – é que responderão ao sofrimento psíquico generalizado

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Em entrevista ao portal do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, publicada hoje também em Outra Saúde, o mentaleiro Paulo Amarante apresentou na última semana sua perspectiva sobre temas que ganham crescente atenção na conjuntura: o grande sofrimento psíquico da população brasileira – e as respostas ousadas e criativas que devem ser formuladas para enfrentar essa crise.

Presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Amarante abre suas considerações criticando a atual disseminação de uma certa utilização do termo saúde mental “como sinônimo, no cotidiano, de determinado bem-estar psicológico, um estado psíquico, espiritual, de falta de sofrimento”.

Lado a lado com essa distorção, para o psiquiatra, anda a concepção excessivamente medicalizante e patologizante da saúde da psique, difundida por “financiamento, laboratórios, formação de profissionais, propaganda da mídia”. Se é necessária a erradicação de sofrimento, responda-se a todas demandas do paciente com a prescrição de remédios, para o gosto da indústria farmacêutica. Impõe-se uma restrição à ação dos sujeitos: todas as contradições e angústias biopsicossociais devem ser resolvidas no âmbito estritamente individual.

Para Amarante, não é coincidência que, na recente onda de ataques armados que se expandiu dos Estados Unidos para o Brasil, “locais de cultura, como teatros e cinemas, e locais de formação pedagógica sejam os escolhidos para essas práticas de violência”. Aí também se expressa a rejeição do coletivo e a entronização do individual. Pouco valem, no tempo da hegemonia neoliberal, os locais de trocas e experiências coletivas, ameaçados pela ideologia dominante (mas também por seu esvaziamento interno, como no caso das escolas, “construídas e mantidas em um modelo de educação absolutamente arcaico”, igualmente orientado pelas noções individualistas de perdedor e vencedor, destaca o psiquiatra).

Nesse contexto, reivindicando sua condição de militante histórico pela reforma psiquiátrica, Amarante não se furta de tecer críticas ao atual formato – e à atual situação – da rede de atenção psicossocial no SUS. Em sua visão, há uma insuficiência em quantidade, mas principalmente em qualidade.

Para responder a essa ofensiva das ideias retrógradas no campo da saúde e às limitações do atual formato da rede, a solução está à mão: “políticas públicas que pensem a saúde não como tratamento de doença, mas como qualidade, defesa e promoção da vida”, diz Amarante. O Estado não pode abrir mão de intervir decisivamente e em diversas frentes. “Fechar mais manicômios e abrir mais Caps”, ele sintetiza – mas sempre abrindo espaço para as estratégias culturais, laborativas e de contato com a sociedade, sempre valorizando “a comunidade e o território”. 

Do Balé de Manguinhos à Copa da Inclusão, passando pelos blocos de carnaval da luta antimanicomial e pelos Pontos de Cultura, são muitas as iniciativas que, para o psiquiatra, já contribuem com essa perspectiva do bem-estar coletivo que incide positivamente na condição psíquica dos cidadãos.

Outras inovações já não o animam tanto. Em matéria de uso da inteligência artificial na saúde, Amarante acredita que, ainda que a telessaúde e a digitalização no atendimento tenham vindo para ficar, nada poderá substituir “o verdadeiro contato humano, o olhar” na assistência psicossocial. Já as plataformas digitais, diz, devem estar submetidas a um “controle social em prol do bem-estar da sociedade”.

O quadro geral é complexo. Interesses ideológicos e de mercado apregoam, com aparente sucesso, as bandeiras do “aumento da produtividade, da busca do individualismo, da superação do outro” para a população. O que predomina nas mentalidades é o “farinha pouca, meu feijão primeiro”, expressão citada mais de uma vez por Paulo Amarante na entrevista. 

Para enfrentar esses desafios, assim como nos primeiros momentos da reforma psiquiátrica, será preciso mostrar que o Brasil já “sabe na prática como se faz tratamento com cuidado e liberdade”, defende o mentaleiro. Contra o neoliberalismo que se infiltra no campo da saúde mental, o caminho é valorizar a vida, a coletividade e a humanidade.

Leia a entrevista de Paulo Amarante ao CEE/Fiocruz.

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