O Brasil tenta colocar de pé ao longo de sua presidência do G20 uma aliança para a produção local e regional de insumos para a saúde e vacinas, focando principalmente em doenças negligenciadas, como dengue, malária e tuberculose. A ideia do governo é convencer os demais países da necessidade de descentralizar os pólos de produção global e se preparar para eventuais novas crises, como pandemias. A proposta dialoga com interesses brasileiros no mercado farmacêutico e com metas nacionais já estipuladas pelo Ministério da Saúde.
A experiência com a Covid-19 é apontada pelo Brasil como um dos fatores para corroborar a importância da medida aos outros países. À época, nações com baixa produção de insumos farmacêuticos enfrentaram dificuldade na compra de vacina e equipamentos médicos em razão da baixa oferta no mercado, que se concentrou em nações como os Estados Unidos (com a Pfizer e Moderna), o Reino Unido (com a Astrazeneca/Oxford) e a China (com a Sinovac).
— A pandemia de Covid-19 expôs nossas vulnerabilidades e provocou discussões no mais alto nível sobre maneiras de melhorar a arquitetura internacional e aumentar a resiliência de nossos sistemas nacionais de saúde — disse a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ao GLOBO.
Ela afirma que todas as propostas serão baseadas no princípio de “equidade na saúde”. Segundo a ministra, o Brasil tem um objetivo claro na cooperação internacional: reduzir as barreiras de acesso aos serviços de saúde e combater os vazios assistenciais.
— Essa aliança entre todos os países é fundamental para garantir mais vacinas, mais medicamentos e inovação de forma igualitária.
Doenças se espalham
Um outro ponto de alerta apontado pelo governo para embasar a proposta é o surgimento dessas doenças em outras regiões do mundo. A dengue, por exemplo, já foi registrada no Uruguai, Japão e França. O cenário ainda pode ser agravado pelas mudanças do clima, propícias para a disseminação.
No continente americano, o quadro da infecção já é enquadrado como "surto" pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas). Com mais de 3,5 milhões de registros de dengue nos três primeiros meses do ano, o diretor-geral da organização, Jarbas Barbosa, afirmou na última semana que 2024 pode ser o pior ano de volume de casos nas Américas.
Barbosa classificou a situação no continente como preocupante. Brasil, Argentina e Paraguai, segundo a Opas, respondem por mais de 90% dos casos e 80% das mortes por dengue nas Américas. O Brasil lidera o ranking, com 2,9 milhões de casos e mais de 700 óbitos.
Nesse contexto, a ideia da aliança, além de diversificar a rede para produção, é fomentar produtos que faltam no mercado. No caso da dengue, por exemplo, apesar da existência da vacina, ainda não há um tratamento.
Pelo formato proposto até o momento, a aliança colocaria em contato centros de pesquisas em desenvolvimento, governos, setor privado, organizações e instituições financeiras para viabilizar soluções encontradas, ou seja, quem tem proposta e quem pode financiar. O governo não trabalha, pelo menos até o momento, com fundos de financiamento, em uma tentativa de escapar das burocracias que podem envolver esse formato e dar mais agilidade para as soluções.
O objetivo é que a produção seja estimulada na África e na América Latina, o que deixaria o Brasil em uma posição vantajosa. Atualmente, o país é um dos principais países da América Latina em pesquisa e produção em saúde. Além disso, 15 das 25 doenças negligenciadas apontadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) são condições comuns no Brasil.
Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, aponta que a aliança, além de viável no cenário atual, ela é necessária para fortalecer parcerias para o combate dessas doenças, que trazem equidade à saúde do planeta, principalmente para os países mais pobres, mais acometidos por essa doença.
— No momento atual, é perfeitamente cabível e necessária a construção dessa aliança para fortalecer as parcerias de cada país para contribuir nesse cenário onde certamente os países ricos têm menos interesse em desenvolver estratégias de prevenção e tratamento dessas doenças negligenciadas. Mas é preciso mais do que o discurso, tem que criar condições para que essas parcerias se estabeleçam.
Em fevereiro, o Ministério da Saúde lançou um programa que visa eliminar doenças socialmente determinadas, ou seja, que acometem populações em vulnerabilidade social, como tuberculose, hanseníase, e malária, que também são classificadas como negligenciadas.
A meta do governo é apontada como ambiciosa por especialistas. Kfouri ressalta ainda a importância de ter um orçamento próprio e robusto para essas questões.
— Quando a gente coloca alguma coisa como prioridade no programa de saúde precisa ter dinheiro novo. Não é o mesmo dinheiro, o orçamento.
Em fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, junto com a ministra Nísia Trindade. Os três discutiram o acordo internacional de prevenção, preparação e resposta a pandemias, reforçado pela proposta apresentada pelo Brasil no G20.
Um dos principais temas debatidos no encontro foi o fortalecimento da chamada Arquitetura Global da Saúde. Entre as propostas em análise, que poderão ser incorporadas à declaração final de líderes do G20 em novembro deste ano, estão a distribuição e o acesso oportuno e equitativo à tecnologia em saúde; a capacidade de produção diversificada e sustentável, levando em conta as necessidades regionais; o fortalecimento da prevenção e vigilância, por meio da abordagem "Uma Só Saúde".
"Desafio enorme, mas exequível"
Nísia afirmou ao GLOBO que o objetivo da aliança de garantir mais vacinas, medicamentos e inovação de forma igualitária é a agenda do Complexo Industrial de Saúde, e “converge totalmente” às propostas do governo sobre o tema, apresentadas em 2023. Na ocasião, a atual gestão anunciou compromisso em produzir pelo menos 70% das necessidades do SUS (como vacinas, medicamentos e equipamentos médicos) em 10 anos, até 2033.
A ação mira fortalecer o setor industrial sanitário local e reduzir a dependência do mercado internacional. Atualmente, o Brasil só produz 5% dos insumos farmacêuticos do SUS, sendo os outros 95% importados da China e da Índia, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abifiqui).
— É um desafio enorme, mas exequível. O foco do governo brasileiro e na América Latina deve ser melhorar a indústria, que é pequena, mas possui muito conhecimento de produção. Definir prioridades do que será produzido e ampliar a capacidade produtiva, o que significa aumentar os investimentos. Na minha visão, o governo acerta em alinhar as metas internas às do G20 — comentou o presidente executivo da Abifiqui, Norberto Prestes.
Inscreva-se na Newsletter: Saúde em dia