‘Vamos ter uma nova pandemia no futuro, isso é certo, mas estamos melhor preparados’, diz Jarbas Barbosa, brasileiro diretor da Opas
Ao GLOBO, Barbosa fala sobre os principais obstáculos que a região das Américas vive hoje e aponta os principais desafios para os próximos anos
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/a/E/feuPxeTU6jNlUITLuotg/paho-director-jarbas-barbosa-official-portrait-high-res-0.png)
RESUMO
Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você
GERADO EM: 18/07/2025 - 18:17
Jarbas Barbosa alerta sobre nova pandemia e destaca preparo global aprimorado e desafios nas Américas
Jarbas Barbosa, diretor da Opas, destaca que uma nova pandemia é inevitável, mas a preparação global melhorou. Ele enfatiza a importância da capacidade nacional para rápida identificação e contenção de surtos. Barbosa aborda desafios nas Américas, como doenças crônicas e a expansão da dengue, defendendo o fortalecimento da atenção primária e a produção regional de vacinas. Ele também menciona avanços na eliminação de doenças como sarampo e a necessidade de enfrentar a desinformação sobre vacinas.
Com quase 123 anos de história, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) é a agência internacional de saúde mais antiga do mundo. A partir de 1949, passou a atuar também como escritório regional para as Américas da recém-criada Organização Mundial da Saúde (OMS). Porém, em mais de um século de atuação, apenas dois diretores vieram do segundo país mais populoso da região: o Brasil.
Pernambucano, doutor em Saúde Pública e ex-diretor da Anvisa, Jarbas Barbosa exerceu diferentes cargos em secretarias e no Ministério da Saúde até, em setembro de 2022, ser eleito para comandar a Opas. Quase três anos depois, ele chama atenção para os novos desafios que a região enfrenta e a necessidade incorporar as lições da Covid:
— Estamos melhor preparados para uma próxima pandemia, mas como não sabemos onde vai começar, a capacidade nacional é a única maneira de identificar rápido e conseguir conter ou minimizar a disseminação na fonte. Fortalecer isso e, ao mesmo tempo, a governança regional e global é a chave.
Ao GLOBO, o diretor da Opas fala sobre os principais obstáculos que a região das Américas vive hoje, como a expansão da dengue e o avanço de doenças crônicas não transmissíveis, e também aponta os principais desafios para o futuro.
Quais os maiores desafios que precisamos enfrentar nos próximos anos?
Além das doenças infecciosas, temos uma questão importante que são as doenças crônicas não transmissíveis. Nas Américas, 81% das mortes são relacionadas a problemas cardiovasculares, diabetes, cânceres, entre outros. E isso vai crescer, porque a América Latina e o Caribe passam por uma transição demográfica muito rápida que leva ao envelhecimento da população.
Estimamos que 34% dessas mortes são preveníveis. Podemos reduzir muito o número de mortes por AVC, por infarto, se tivermos uma atenção primária com mais capacidade de detectar rapidamente, de oferecer tratamentos adequados e controlar essas doenças. Hipertensão, por exemplo, é a maior causa de morte de adultos no mundo. É tão frequente que, depois dos 50 anos, praticamente metade dos adultos tem. Só que, de cada 100 pacientes, só 50 sabem que têm e 25 controlam a doença.
Quais são desafios próprios da região das Américas?
Somos a região do mundo que mais reduziu a prevalência do uso do tabaco, mas a indústria tem se adaptado e lançado os cigarros eletrônicos, que têm conquistado uma parte dos adolescentes e jovens e representam um novo desafio. E somos a única região em que o suicídio teve um incremento consistente nos últimos 20 anos, de 17%, com vários casos em jovens.
Precisamos ter uma saúde mental mais integrada com atenção primária, reduzir o estigma e a discriminação, trabalhar com escolas, fazer um esforço grande para que as pessoas busquem ajuda quando passam por algum sofrimento e alguma dificuldade.
Também temos um grande problema também que são as mortes relacionadas com a má qualidade do ar, que muitos países da região nem conseguem quantificar. E temos problemas de subfinanciamento dos sistemas de saúde. A média nas Américas de gasto público com saúde está em torno de 4%. O Brasil está um pouquinho acima da média regional, 4,1%. Mas recomendamos 6%.
Sobre as doenças infecciosas, o senhor diria que hoje estamos mais preparados para o caso de uma nova pandemia?
Estamos melhor preparados, sem dúvidas. Fizemos uma avaliação externa e já implementamos dezenas de mudanças em processos internos para isso. No caso dos países, apoiamos muitos a implementarem projetos apresentados para o fundo pandêmico, fortalecendo a capacidade de laboratório, treinamento de recursos humanos.
Antes da pandemia, só dois ou três países, principalmente Estados Unidos e Canadá, tinham capacidade de fazer vigilância genômica. Hoje, 30 países da região têm. Usamos isso para monitorar sarampo, chikungunya, mpox, influenza aviária, uma série de doenças e faz com que estejamos numa situação muito melhor.
Tivemos esse ano a aprovação do acordo global de pandemias, que responde a um problema grave que tivemos com a Covid que foi o acesso desigual a respiradores, medicamentos, vacinas. Ao mesmo tempo, estamos fortalecendo a capacidade produtiva regional. Temos dois projetos de desenvolvimento de vacina de RNA mensageiro aqui, um na Argentina e um no Brasil, na Fiocruz.
Uma lição que ficou também é fortalecer a atenção primária, com mais capacidade resolutiva, que acelere a transformação digital, a telemedicina. Avançamos muito, mas não podemos baixar a guarda. A Covid mostrou que mesmo os países mais preparados não estavam o suficiente para responder a uma pandemia com aquelas características. E não estaremos nunca completamente preparados pelo grau de incerteza de qual será a próxima causa.
Muitos falam que não é uma questão de “se”, mas sim “quando” vamos ter uma próxima emergência. O senhor concorda? O que deve ser feito para minimizar os riscos?
Vamos ter uma nova pandemia, isso é certo, mas não sabemos o que e quando vai acontecer. Temos algumas suspeitas. Quando olhamos para o passado, vemos que todas as emergências de saúde pública mais importantes foram produzidas ou por vírus influenza ou por coronavírus. O único caminho é implementar todas as lições que aprendemos com a Covid. Há uma obrigação histórica de utilizar esse aprendizado após o impacto dramático que tivemos.
Como não sabemos onde vai começar, a capacidade nacional é a única maneira de identificar rápido e conseguir conter ou minimizar a disseminação já na fonte. Fortalecer isso e, ao mesmo tempo, a governança regional e global é a chave para um mundo mais preparado.
Hoje temos um cenário de atenção com a Influenza aviária. Como o senhor vê esse risco?
O influenza é sempre um candidato forte para originar uma nova pandemia. Monitoramos muito de perto a situação aqui nos Estados Unidos. Felizmente, até hoje tivemos apenas transmissão acidental para seres humanos, a grande maioria casos leves, o que é diferente do que víamos com a doença. Temos fortalecido a vigilância e trabalhado já com produtores de vacina da região para termos a capacidade de desenvolver uma vacina pandêmica rapidamente, se for necessário.
O Brasil viveu a maior epidemia de dengue da sua história em 2024. Outros países da América do Sul também vivem uma expansão da doença. Como a Opas vê esse cenário hoje e nos próximos anos?
Dengue é um problema grave na região. Temos problemas estruturais na América Latina, além da predisposição do clima e do impacto das mudanças climáticas, que favorecem o crescimento do mosquito. Tivemos uma urbanização muito acelerada, o que criou cidades com acesso limitado à água potável e faz com que quase todo mundo precise armazenar água. Quem não tem uma boa condição armazena como pode, mas isso é um risco. E temos uma gestão inadequada de resíduos, o que deixa muitos recipientes disponíveis para, quando tem chuva, acumularem água.
Em 2024, tivemos uma epidemia histórica, com mais de 13 milhões de casos. 20 países da América Latina e Caribe registraram epidemias. Em 2025, a gente tem uma redução importante de casos. O próprio Brasil diminuiu em 70%. Porém, por essas condições estruturais, a dengue seguirá sendo um desafio. Muitas vezes essa queda ocorre pelo esgotamento de suscetíveis relacionados àquele sorotipo do vírus que circula mais. Mas isso dura 2, 3 até 4 anos, e podemos ter de novo uma nova epidemia.
Precisamos trabalhar o controle integrado de vetores, ou seja, vigilância, atuação do poder público, mobilização de comunidades, para reduzir o crescimento do Aedes aegypti. Ao mesmo tempo, trabalhar a preparação dos serviços de saúde para evitar as mortes por dengue, que podem ser quase sempre prevenidas com medidas relativamente simples, como identificar os sinais de agravamento, disponibilizar salas de reidratação.
E apoiamos novas ferramentas, como uso de mosquitos com a bactéria Wolbachia, estratégias de geolocalização para identificar onde a transmissão do vetor começa. Há muitas inovações porque vamos conviver com a dengue ainda durante muitos anos. A vacina da dengue também é oferecida pelo nosso fundo rotatório de vacinas e recomendamos a sua introdução principalmente em populações de alta carga de dengue.
Mas a vacina ainda vai levar muito tempo até ter um impacto efetivo sobre a doença. Na região ela já foi introduzida na Argentina, Brasil, Honduras e Peru, com diferentes políticas de incorporação. Precisamos ampliar o acesso e, paralelamente, trabalhar com essas outras ferramentas que temos.
Tivemos no Brasil as primeiras mortes por febre oropouche em meio a um avanço inédito da doença. Qual o nível de preocupação?
O oropouche é uma das doenças que temos monitorado muito de perto. Não é uma doença nova, foi detectada pouco depois da metade do século passado no Caribe e depois continuou de maneira muito frequente na Amazônia. O que temos agora é o surgimento da transmissão fora da Amazônia brasileira, em áreas rurais de pequenos municípios, de plantação, de fazendas. E tivemos também uma disseminação importante em Colômbia, Peru, Cuba, Bolívia, ou seja, ecossistemas diferentes do tradicional.
Temos trabalhado muito com especialistas e centros de pesquisa para compreender o que está acontecendo. Há um legado positivo da pandemia que é a presença de métodos moleculares em praticamente todos os países da região, então uma capacidade de fazer um diagnóstico preciso do oropouche. Há uma hipótese de que o oropouche ocorria antes, mas não era identificado pela falta de capacidade de diagnóstico.
No passado, acreditava-se que os casos eram sempre leves, mas tivemos essas poucas mortes. Estamos investigando os fatores que podem estar contribuindo para que a doença se transforme num caso grave.
Após avanços importantes na eliminação do sarampo, há surtos em andamento em países como Estados Unidos e Canadá. Como a Opas vê o risco de reintrodução sustentada da doença nas Américas?
O sarampo é talvez a doença mais contagiosa que temos no mundo. Das 6 regiões em que a OMS divide o planeta, só as Américas foram capazes de eliminar a transmissão local. Conquistamos o certificado novamente em 2024 depois de ter perdido em 2018 pela reintrodução no Brasil e na Venezuela.
Hoje, porém, três países enfrentam surtos com transmissão, Canadá, Estados Unidos e México. Ela começou em uma comunidade que é muito refratária à vacina. Ainda estamos no prazo de 12 meses antes de perder o certificado e esperamos que os três consigam interromper a transmissão a tempo.
Existem três fatores que são chave para o sarampo, o primeiro é ter uma cobertura alta, de 95%, e homogênea. Como é muito contagiosa, só temos proteção com essa cobertura. Segundo, ter um sistema de vigilância muito sensível, que possa detectar rapidamente um caso importado, rastrear os contatos e fazer o bloqueio. Há muita transmissão fora das Américas, na Europa, na Ásia, na África.
Fico muito orgulhoso porque a região das Américas é a que mais rapidamente recuperou o impacto negativo que a pandemia produziu na vacinação. O Brasil melhorou muito e chegou a 95% com a primeira dose em 2024, o que é um resultado excelente para um país desse tamanho. Mas precisamos atingir esse percentual também com a segunda dose, que é o que vale para a cobertura.
Quais as maiores dificuldades hoje para retomar a vacinação? É a desinformação?
Temos dois grandes problemas. O tema da desinformação contribui muito, cria insegurança nas famílias, às vezes até nos profissionais de saúde. Ao mesmo tempo, precisamos melhorar a organização dos serviços. As cidades na América Latina cresceram de maneira muito acelerada, isso cria dificuldades para o acesso mesmo nas áreas urbanas. Temos o calendário de vacinação mais amplo em todas as 6 regiões do mundo, o que é excelente, mas faz com que uma criança tenha que ir de 10 a 12 vezes numa unidade de saúde durante o primeiro ano para tomar todas as vacinas.
Só que, na América Latina, metade da economia é informal. E metade das famílias pobres têm somente um adulto que tem uma renda, geralmente uma mulher. Se um posto de saúde só abre de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, essa mulher teria que perder de 10 a 12 dias de trabalho para levar o filho para vacinar. O que, muitas vezes, significa perder a única renda que teria naquele dia ou arriscar perder o trabalho.
É preciso abrir postos de saúde aos finais de semana, de noite, onde há segurança, utilizar estratégias específicas. Desinformação é muito importante, mas não é o único problema. Se não organizarmos bem os serviços de saúde, não removeremos as barreiras de acesso, e o cenário não vai melhorar.
A mpox permanece como uma ameaça à saúde pública no mundo hoje, como é o cenário nas Américas?
Depois daquele pico de 2022, tivemos uma redução dos casos. Tivemos pouquíssimos casos do chamado Clado 1b, que é essa linhagem do vírus que fez a OMS renovar o alerta de emergência. Temos que manter a vigilância,integrar a busca de casos de mpox em serviços que lidam com populações com um número maior de parceiros sexuais. Com isso e com a oferta da vacina para alguns grupos de maior risco, estaremos respondendo bem. Não espero que venha a ser um grande problema de saúde pública aqui nos próximos meses ou anos.
O senhor é o segundo brasileiro a liderar a Opas, o primeiro neste século. Qual a importância de alguém do Brasil estar à frente da organização? Qual legado pretende deixar?
É um motivo de orgulho muito grande e tenho cinco prioridades durante o meu mandato. Em primeiro lugar, não eliminar doenças que temos as ferramentas para isso, como malária, câncer cervical, filariose linfática, não é só uma questão de saúde pública, é um problema ético e moral. Até porque essas doenças são contribuição importante para a própria pobreza da região.
A segunda prioridade é a redução das mortes evitáveis por doenças não transmissíveis. É inaceitável termos pessoas morrendo aos 55 anos de AVC porque não sabia que tinha ou não tratou de maneira adequada uma hipertensão, ou porque diagnosticou um câncer já em estágio avançado.
A terceira é fortalecer a atenção primária e alcançar a efetiva implementação do acesso universal à saúde. A quarta é ajudar os países a acelerar a transformação digital. Ela é fundamental porque remove barreiras, permite que uma pessoa, numa periferia de São Paulo, consiga ter uma consulta com um cardiologista no centro de saúde perto da sua casa. Ela não precisa perder um ou dois dias de trabalho, gastar dinheiro de transporte.
E a quinta que é a produção regional. Nós temos capacidade e podemos avançar muito para buscar uma autossuficiência no futuro próximo. Estamos fortalecendo as autoridades regulatórias para que elas se qualifiquem na primeira divisão global e para termos projetos estratégicos, como os da vacina de RNA mensageiro.
Precisamos ter mais eficiência. As organizações multilaterais hoje têm que provar para os países que cada centavo que recebemos é gasto da melhor maneira possível. Pensar em descentralização, redução de burocracias, aumento de transparência e economia de recursos é uma maneira de mostrar que estamos comprometidos.
Inscreva-se na Newsletter: Saúde em dia